quarta-feira, 22 de agosto de 2018

O maratonista, um sonho

1) Em um dos contos da coletânea de Danilo Kis, Alaúde e cicatrizes (uma reunião póstuma de contos, com um aparato de notas e de contextualização que é, por si só, ficcional, imaginativo e digno de outro conto de Danilo Kis), intitulado "O maratonista e o juiz", um homem sonha. O homem sonha que corre uma maratona e que está à frente de todos, surpreendentemente não cansado - até que surge o juiz e ordena que ele pare; em seguida surge sua esposa e faz o mesmo pedido; ele acorda. O conto faz parte da ampla literatura já escrita em torno das relações entre o inconsciente e a violência ou, mais especificamente, o inconsciente e o totalitarismo (o maratonista acorda e descobrimos que ele está em um gulag soviético).
2) O primeiro ponto de contato possível é o romance Correr, de Jean Echenoz, sobre a história do maratonista Emil Zatopek, vigiado pelo mesmo regime do corredor de Danilo Kis. Um contato temático, contudo, que pode ser ampliado em direção à questão mais ampla acerca da relação do inconsciente com o totalitarismo - uma relação entre o fora e o dentro, entre o indevassável do indivíduo e um regime que busca pôr a nu todas as facetas da vida do indivíduo (e mais: como diante do totalitarismo o inconsciente também encontra o limite de seu paradoxo - sendo organizado por certas leis - as leis da linguagem, segundo Lacan -, ele ainda assim consegue dar conta de toda uma série, virtualmente infinita, de associações erráticas, libertárias, contraditórias, na contramão do totalitarismo, portanto).
3) Cito uma passagem de Slavoj Zizek na qual ele comenta o tema através de Adorno (assim como poderia também remeter ao livro Sonhos no Terceiro Reich, de Charlotte Beradt): "Adorno disse que o conhecido lema nazista Deutschland, erwache! [Alemanha, desperta!] significava seu exato oposto, na verdade: a promessa de que, se obedecermos a esse chamado, poderemos continuar dormindo e sonhando (isto é, evitando o encontro com o Real do antagonismo social). De certo modo, portanto, o trauma que encontramos no sonho é mais real do que a própria realidade (social externa)" (Alguém disse totalitarismo?, tradução: Rogério Bettoni, Boitempo).     

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