Já no final de As núpcias de Cadmo e Harmonia, seu livro sobre a mitologia grega, Roberto Calasso chega finalmente a uma das versões da história de Harmonia. Quando Cadmo chega ao reino de seu pai, já sabendo que Harmonia lhe está destinada, a menina não se impressiona. Não foi fácil persuadir Harmonia, escreve Calasso. Fechada em seu quarto de moça, esbravejava entre lágrimas, tocando os objetos mais queridos, que não queria deixar. Por que a mãe decidira entregá-la àquele homem desconhecido, que contava histórias pouco confiáveis, que não tinha nada para oferecer, exceto os equipamentos do navio, um vagabundo, um fugitivo, um marinheiro, um homem sem eira nem beira?
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Não foi Electra, a mãe, quem persuadiu Harmonia, mas a amiga Peisínoe, que se fechou com ela no quarto. Queria confessar-lhe que o "belo estrangeiro" não lhe saía do pensamento. Falava num "delírio de adolescente", descrevia o corpo de Cadmo, sonhava que a mão dele lhe acariciasse os seios redondos sem escrúpulos, sonhava "mostrar-lhe a nuca". Harmonia a escutava e se dava conta de que algo estava mudando nela: "enamorava-se pelo desejo da amiga, continuando a olhar ao redor desesperada, pois sabia que, se partisse, nunca mais havia de rever aquele quarto" (p. 263).
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Harmonia desejava o desejo da amiga e nesse percurso aceita Cadmo. É exatamente o que vai dizer Alexandre Kojève em sua Introdução à leitura de Hegel: "o desejo é o desejo do outro". Kojève deixa a Alemanha durante a ascensão do nazismo e sucede Koyré na École Pratique des Hautes Études, em Paris. Ali, de janeiro de 1933 a maio de 1939, apresenta seu curso sobre Hegel, pelo qual passaram Raymond Aron, Georges Bataille, Pierre Klossowski, Jacques Lacan, Maurice Merleau-Ponty, Raymond Queneau, Eric Weil, e esporadicamente, André Breton.
"Queneau, que coligiu as suas notas de curso e fixou o que conhecemos desse ensinamento essencialmente oral, em 1947, diz que Bataille aproveitou profundamente as lições do mestre, embora frequentemente dormitasse durante a aula."
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