1) Na obra de Pierre Michon, o arco que leva de Vidas minúsculas (1984) a Senhores e criados (1990) é breve, mas aponta para uma mudança substancial com relação ao foco que apreende essas vidas - sem escapar desse interesse biográfico, Michon consegue transformar o tema. Essa transformação está diretamente ligada ao abandono daquela voz narrativa centrada que encontramos em Vidas minúsculas, ligada de forma bastante introspectiva ao próprio Michon, sua infância, suas hesitações com relação à escrita, etc.
2) A edição brasileira de Senhores e criados acrescenta dois outros textos de Michon: Vida de Joseph Roulin, de 1988, sendo, portanto, anterior à edição original de Senhores e criados, e O rei do bosque, de 1992, sendo, portanto, posterior à edição original de Senhores e criados. Temos a seguinte linha cronológica à disposição: Vidas minúsculas (1984), Vida de Joseph Roulin (1988), Senhores e criados (1990) e O rei do bosque (1992). Os três últimos títulos são ficções que trabalham com vidas de pintores: Francisco Goya, Antoine Watteau, Piero della Francesca, Vincent van Gogh e Claude Lorrain.
3) Vida de Joseph Roulin é precisamente aquilo que indica - um fragmento da vida de Roulin, funcionário dos Correios em Arles, no sul da França, cujo retrato foi pintado por Van Gogh várias vezes. O que é importante notar é que parte do procedimento presente em Vidas minúsculas permanece em Joseph Roulin, mas invertido: se a voz narradora e sua subjetividade eram aos poucos delineadas a partir do confronto com essas vidas alheias em Vidas minúsculas, no caso de Roulin há também uma subjetividade forte e dominante, aquela de Van Gogh, que é resgatada, no entanto, sempre de forma indireta, oblíqua, através da vida de Roulin, o carteiro. A história narra a progressiva e penosa conscientização que Roulin alcança do fato de que Van Gogh era um grande pintor, e não apenas o excêntrico ridicularizado pela vila. Isso acontece quando um homem aparece em sua casa querendo comprar o quadro que van Gogh lhe havia dado: "Devia àquele rapaz ter conhecido um grande pintor, ter visto e tocado uma coisa de certa forma invisível, não apenas um pobretão a quem dão geleias" (Senhores e criados, trad. André Telles, Record, 2010, p. 47).
Um dos mais subestimados lançamentos do mercado editorial brasileiro dos últimos tempos. Um livro de narrativas magníficas!
ResponderExcluirÉ realmente um grande livro, Ronnie.
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