1) Em Vidas minúsculas (1984), Pierre Michon persegue a si próprio, persegue esse Pierre Michon que existia antes da escritura, por isso a frequente enunciação - depois que a narrativa ultrapassa certo ponto cronológico equivalente à maturidade - de certa incapacidade de escrita, culminando numa relação muito particular com o arquivo, com a tradição, relação essa condensada naquela cena do narrador que carrega uma mala (a arca, a arkhé, o arquivo) cheia de livros inúteis debaixo da chuva. As vidas minúsculas servem para delinear de forma contrapontística essa identidade incapaz, impossível e incompleta.
2) Em Bruce Chatwin, por outro lado, em Colina negra (1982), encontramos o mesmo resgate do cenário da infância, o mesmo interior do país povoado de figuras arcaicas (a França para Michon, a Inglaterra para Chatwin) e suas relações com a terra e a técnica, mas não há a emergência dessa subjetividade diante da escrita - o narrador é mantido de fora, não-problematizado. Um ponto intermediário está em Sebald, Os emigrantes (1992): não encontramos nem a proximidade constante do narrador de Michon, nem o distanciamento quase cirúrgico (os capítulos curtos, os vertiginosos e incrivelmente competentes ajustes de foco, do geral ao particular em um breve parágrafo) de Chatwin em Colina negra (lembrando quão atípico é esse livro no contexto geral da obra de Chatwin).
3) Algo disso ecoa em Alice Munro, A vista de Castle Rock (2006), seu livro híbrido, entre a ficção e a memória, entre o resgate das origens familiares e a imaginação narrativa: "há uns dez ou doze anos", escreve ela, "passei a ter um interesse mais que fortuito pela história de um lado de minha família", "não eram conhecidos nem prósperos e viviam no vale do Ettrick", na Escócia, "alguns personagens se me apresentaram em suas próprias palavras, outros brotaram das situações. Suas palavras e as minhas, uma curiosa recriação de vidas, em um contexto que era tão fiel quanto pode ser nossa noção do passado". O material da família se misturou a um "conjunto especial de histórias": "colocava-me a mim mesma no centro", escreve Munro, "e escrevia sobre esse eu, do modo mais inquisitivo que conseguia", "mas as figuras em torno desse eu assumiam sua própria vida e feições e faziam coisas que não tinham feito na realidade" (A vista de Castle Rock, trad. Cid Knippel, Globo, 2014, p. 9-11).
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