1) E se o Pensador fosse, na verdade, um Ouvinte? Ou melhor, se fosse pensador na medida em que se instaura como ouvinte? No tratado Sobre a vida contemplativa, Fílon de Alexandria discorre sobre a relação entre silêncio e escuta e sugere a escolha (o cultivo) de uma postura fixa para o ritual da escuta - Foucault comenta esse tratado em uma conferência dada em 1982 nos Estados Unidos, "As técnicas de si": em Sobre a vida contemplativa, Fílon de Alexandria "descreve os banquetes do silêncio, que não têm nada a ver com esses banquetes de devassidão, em que há vinho, rapazes, orgias e diálogo. Aqui, é um professor que oferece um monólogo sobre a interpretação da Bíblia e dá indicações muito precisas sobre a maneira como convém escutar. Por exemplo, é preciso assumir sempre a mesma postura quando se escuta." (Dits et Écrits, vol. IV, texto nº 363).
2) É significativo que o projeto inicial de Rodin tenha sido o de abarcar, nessa imagem, a partir de Dante, tanto o poeta quanto o pensador - pois na estátua temos também Dante diante do Inferno, ou ainda, Dante simultaneamente diante do Inferno e de seu poema. Se lhe chegam vozes vindas do Inferno, e se essas vozes configuram a espessura poética da Comédia, é precisamente aí que o pensador se instaura necessariamente como ouvinte, dois lados entre muitos na emergência contingente do poeta.
3) Pose e situação são análogas àquelas do Moisés do Antigo Testamento, em parte figurado por Michelangelo - o pensador-poeta-ouvinte sentado na pedra, a mesma pedra que feriu com seu cajado para dela extrair água, ouvinte em sua relação com o povo (essas vozes vindas de uma espécie de Inferno, o deserto), poeta em sua relação com Deus (é ele quem porta a palavra). Não é Moisés um dos principais modelos de Freud? Ao abrir seu Traumdeutung, sua interpretação dos sonhos, Freud não evocou justamente Virgílio na epígrafe, aquele mesmo Virgílio que serviu de guia a Dante? Freud resgata uma frase da Eneida, Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo, se não dobro poderes elevados, moverei o Inferno - ou seja, atento ao abismo do inconsciente, pensador-ouvinte (escuta-dor, diria Lacan? ou Joyce?), sempre na mesma postura, com essa "atenção flutuante" de que fala Freud em "Recomendações ao médico que pratica a psicanálise", de 1912, uma sorte de escuta contemplativa, aberta e porosa àquilo que ainda não se sabe, aberta àquilo que não se espera.
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