segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Os bufões

1) Uma consequência curiosa das Cruzadas foi a introdução do bobo da corte - ou bufões - nos salões da realeza europeia. A ideia do louco integrado ao sistema do poder vem das cortes do Oriente, mas também tem raízes bem mais profundas, estruturais. Todo sistema de poder parece incluir em sua operação também o elemento grotesco, absurdo, que questiona e problematiza a superfície polida do poder. Mas esse elemento estranho é mantido sob controle, administrado em doses homeopáticas, visualizado em miniatura. O bufão representa a massa amorfa e desconhecida que está do lado de fora, tornando-a, com sua presença, acessível aos sentidos (como os "selvagens" levados à Europa na época dos "descobrimentos"). O bufão encena o povo e, ao mesmo tempo, assegura a distância.
2) Essa convivência tensa entre o poder estabelecido e a estranheza está no centro do prefácio de Victor Hugo a sua peça Cromwell, o tratado que ficou conhecido como Do grotesco e do sublime. Não é por acaso que o modelo de Hugo é Shakespeare, que usou muito as potencialidades dramáticas do bufão, que justamente por seu caráter ex-cêntrico tem direito ao uso mais livre da linguagem - a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria. E a questão do idiota na história da literatura, como mostrei em outro lugar, abrange desde Flaubert até Zizek. 
3) Tudo isso vai desaguar num pequeno livro que Carlo Ginzburg publica em 1996, intitulado Jean Fouquet: Ritratto del buffone Gonella. Trata-se não apenas da história do retrato pintado por Fouquet em fins da primeira metade do século XV, mas sobretudo como o pintor chegou ao tema, que tipo de padrões formais antigos tinha em mente quando pensou a pose do bufão, a quem se destinava o quadro e por que razões a identidade do pintor foi questionada por tanto tempo. A centralidade pitoresca que o bufão Gonella alcançou num período muito específico da história da cidade de Ferrara serve a Ginzburg como mote para uma reflexão que vai desde os aspectos morfológicos do quadro (os tecidos, o sorriso, o olhar) até sua contribuição possível para o debate sobre os contatos entre o sul e o norte da Europa no Renascimento.    

2 comentários:

  1. Dê uma passeada no "La fable mystique", de Michel de Certeau para uma outra mirada no fenômeno da idiotia e seu papel como portadora da história plena de som e fúria. Dá caldo.

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