1) A história do bufão Gonella é bizarra: um dia, tentando curar o Soberano de Ferrara de uma febre persistente, Gonella o empurra no rio, sem aviso; mesmo reconhecendo a boa intenção do gesto, o Soberano manda prender Gonella e, de brincadeira, o condena à morte - todos sabem da brincadeira, menos Gonella, que, quando levado ao cadafalso, com um capuz na cabeça, recebe uma balde de água fria e não o corte no pescoço que esperava do carrasco; mas o susto leva o bufão à morte de qualquer forma.
2) O Soberano, conta Carlo Ginzburg, aproveita que Jean Fouquet estava na região - havia sido contratado para fabricar máquinas de guerra - e pede que realize o retrato de seu querido bufão. Aí começam os problemas para o artista: como conciliar a homenagem pretendida depois da morte do bufão com sua atividade em vida - trata-se, no fim das contas, de uma espécie de aporia, de double bind, de dissonância cognitiva. Segundo Ginzburg, Fouquet resolve parte da questão utilizando um gesto que era muito comum na pintura do século XIV ao século XVI: o busto de Cristo enquadrado, espremido, com o rosto caído para o lado, a Imago Pietatis.
3) "Existe uma semelhança tipológica inegável" entre as imagens de Cristo e a de Gonella, escreve Ginzburg, que especula também em torno da possibilidade da história da morte de Gonella ecoar também aquela de Cristo, ridicularizado como "rei dos judeus". Ao cruzar os braços de Gonella, colocando-o enquadrado e espremido, além de posicionar o rosto em direção ao ombro (João 19, 30), Fouquet evocaria não apenas uma representação pictórica tradicional de Cristo, mas também uma relação possível entre as duas histórias: "a dupla alusão iconográfica", escreve Ginzburg, "rastreável no quadro de Fouquet poderia ser ligada à narração, mais ou menos feita de invenção, da morte de Gonella: a história trágica de um bufão ridicularizado" (Ritratto del buffone Gonella, Modena: Franco Cosimo Panini Editore, 1996, p. 34).
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