sábado, 24 de agosto de 2013

Antonio Trabuchi

1) Na primeira edição de Fernando Pessoa ou o poetodrama, de 1974 (São Paulo: Perspectiva), já no final da Bibliografia, na página 207, quando faz a lista das publicações sobre Fernando Pessoa escritas em italiano, o autor do livro, José Augusto Seabra, faz referência a um trabalho intitulado La parola interdetta. Poeti Surrealisti Portoghesi, editado em Turim, pela Einaudi, em 1971. O autor é "Antonio Trabuchi", que conhecemos também como Antonio Tabucchi, aquele que escreveu ao menos duas pérolas irretocáveis: Noturno indiano e Sonhos de sonhos. "Antonio Trabuchi". Como fez Compagnon, que tirou de uma "gralha" em um livro de Borges toda uma densa reflexão sobre a citação e a intertextualidade, também aqui talvez seja possível extrair alguma lição sobre o equívoco, sobre a ironia das atribuições errôneas e sobre a equivocidade inerente a todo acontecimento (ou a feição acontecimental - aquilo que cai, abruptamente - de todo equívoco), que faz, através do riso ou do espanto ou de ambos, rever posições.   
2) Pois não é precisamente isso que está em questão quando se fala em Fernando Pessoa? O equívoco, o outrar, o tornar-se outro? Seabra e Tabucchi se encontram ao redor desse "Trabuchi", autor de um Pessoa surrealista, primeira face de um Tabucchi posterior, mais inventivo, mais ficcional. "Trabuchi" como heterônimo paródico de Tabucchi, perdido na Bibliografia de um livro de 1974, essa Bibliografia que é também um desdobramento paródico do Baú de Pessoa, repositório enigmático de heterônimos. "Trabuchi" também desencadeia uma espécie de dinâmica detetivesca, de busca pelos rastros perdidos do trabalho crítico, suas fissuras e as potencialidades de sentido inerentes a essas fissuras.   
3) Mas essa dinâmica detetivesca é invertida com relação ao modelo clássico: pois não há uma cena do crime que leva à busca pelas pistas; o que há, em primeiro lugar, é a própria pista, e só a pista, tudo que existe é a pista, "Trabuchi", que leva, retrospectivamente, anacronicamente, a uma cena do crime - que é, aliás, completamente ficcional, fantasiosa, delirante. Se a cena do crime é o equívoco de Seabra, então a cena do crime é também sua própria pista, seu próprio rastro - "Trabuchi" é, simultaneamente, o próprio crime e o indício do crime, o signo que pode ser lido e que pode levar em direção a um espaço exterior ao crime. Esse espaço exterior ao crime pode ser a obra de Tabucchi, mas não somente a obra de Tabucchi, mas a obra de Tabucchi sobre Pessoa - pois agora Tabucchi é o ortônimo de seu heterônimo, "Trabuchi".

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