quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Caro Senhor Mann

“Coptic pilgrims from Egypt, bathing in the Holy Waters of the Jordan, Palestine”, c.1900
Um percurso espinhoso promove o contato entre a relação pessoal entre Freud e Thomas Mann e uma reivindicação da história como cena de perda e trauma, cujo acesso só é possível a partir de fragmentos e dejetos coletados na malha do tempo. Numa carta de 1936 a Thomas Mann (Letters of Sigmund Freud, Ernest L. Freud (ed), Nova York, Basic Books, 1960, p. 432-434), Freud fala de José e seus irmãos, fala da carga mitológica que perdura nessa história e cita Napoleão - Napoleão como uma espécie de simulacro de José, envolvido inclusive em intensas batalhas (na infância, com seus irmãos) pelo amor de sua mãe. O antagonismo diante do irmão mais velho, argumenta Freud, foi transformado por Napoleão em amor, mas seguiu determinante para seu caráter. Foi para impressionar o irmão que Napoleão fez questão de invadir o Egito, escreve Freud, e aí tudo se fecha, num nó provisório que une o mítico (o Egito de José, o mesmo Egito de Napoleão), o pessoal, a cena familiar (Napoleão como imperador é ainda um irmão mais novo preso a uma insegurança, a um desejo inconsciente de agradar) e o histórico, a cena mais ampla (o saque do Egito, que sobrevive ainda hoje no Louvre, por exemplo; que sobrevive ainda hoje na argumentação densa e extensa de Edward Said em Cultura e imperialismo). 

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Quem escapará do açoite?

Viena, década de 1920
1) Uma relação de amor se estabeleceu entre Freud e Fliess, com seus componentes típicos: posse, ciúme, paranoia. Freud argumenta que a paranoia tem uma forte conotação homossexual (a perseguição, a violação, o entregar-se a uma força maior) e que envolve frequentemente um delírio de vigilância (basta pensar em O náufrago, de Bernhard, e em como o narrador se sente permanentemente vigiado e acossado pelo gênio do amigo). Foi exatamente o que Fliess imaginou ter acontecido com sua teoria sobre a bissexualidade inerente ao ser humano, que encontrou repercussão não apenas em Freud, mas em vários outros estudiosos envolvidos com a psicologia no início do século XX (como Otto Weininger, por exemplo). Em um de seus últimos encontros, na beira de um lago, Fliess chegou a pensar que Freud estava ali com a intenção de assassiná-lo.
2) Há uma série de analogias e espelhamentos nesse percurso: o caráter homossexual da paranoia em Freud se liga à teorização de Fliess sobre a bissexualidade; a dinâmica da amizade epistolar entre Freud e Fliess (feita de crescentes lapsos no que diz respeito às intenções e recepções, ou seja, as fronteiras entre aquilo que se escreve e aquilo que é lido - a reação de Fliess aos manuscritos de Freud ou as tentativas deste de interpretação de sonhos ou situações familiares de Fliess) ecoará também no futuro, no distanciamento que será tanto de ordem técnico-teórica quanto da ordem da experiência e da vivência (Freud foi um mapeador incansável, incapaz de permanecer no mesmo ponto durante muito tempo, o que não era o caso para Fliess, que passou anos envolvido com a hipótese da bissexualidade, primeiro de forma teórica e depois, longamente, de forma reivindicativa (quando acusou o mundo de plágio).
3) Freud por vezes apresentava um pendor para a auto-acusação típica do melancólico, e daí talvez sua constante movimentação de conceitos, disciplinas e discursos. Prova desse pendor para a auto-acusação melancólica é a citação de Shakespeare, "Trate cada homem conforme seu mérito, e quem escapará do açoite?" (Hamlet, ato II, cena 2, use every man after his desert, and who should scape whipping?), que Freud usa em Luto e melancolia e também em Dostoiévski e o parricídio. Para Freud, a completude da psicologia de Shakespeare fica evidente nesse exercício de simultâneo afastamento e aproximação da pequenez do humano (daí a "invenção do humano" de Bloom), o que se liga - ainda que indiretamente - ao extenso debate com Fliess sobre a bissexualidade (que é também um postulado que leva em consideração essa maleabilidade shakespeariana, essa capacidade de ir do apoteótico ao ínfimo num mesmo registro, numa mesma imagem). Essa oscilação repercute também na literatura contemporânea a Freud, com representantes tanto do lado apoteótico (Thomas Mann, Hermann Broch) quanto do lado ínfimo (Kafka, Walser).

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Um processo medonho

Escrever é um processo medonho. Provoca coisas medonhas. Lembro uma vez, anos atrás, minha mulher e eu estávamos no Sudoeste americano, e entramos em contato com o nosso amigo Cormac McCarthy, e dissemos que íamos estar em Santa Fé. Mas El Paso, onde ele morava, era longe demais para irmos até lá, e assim ele disse que iria até Santa Fé e nos encontraria lá. Ele foi, e passamos um final de semana juntos num hotel da cidade, e foi ótimo, somos bons amigos. Mas ele estava trabalhando na parte da manhã, e no primeiro dia ele desceu para almoçar com a cara acinzentada, os olhos vidrados, a barba por fazer, parecendo um matador, e depois perguntei para a minha mulher: "Sou assim também?". E ela respondeu: "O tempo todo, quando está escrevendo". Foi um choque e tanto para mim. Ele parecia mesmo que tinha acabado de matar alguém. A minha mulher disse que viver com um escritor é como viver com alguém que acaba de voltar de um assassinato especialmente sangrento.

(John Banville em Ramona Koval, Conversas com escritores, tradução de Denise Bottmann, Globo, 2013, p. 354).
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1) O trecho de Banville condiz com a intuição de Freud: alguns escritores alcançaram, através da "intuição", certas "verdades psicológicas" que descobriu somente depois de muito trabalho. Em Moisés e o monoteísmo, Freud fala da escritura - sua criação e sobretudo sua "deformação", ou seja, a citação - como uma espécie de "assassinato", acrescentando que o difícil não é o ato, mas a eliminação dos rastros. A escrita como cena de um encontro violento com o outro (ou com o Outro, para Lacan e Zizek), esse outro que é apropriado, citado, transformado - algo que fica exemplificado nesse estranhamento de Banville diante de McCarthy: sou assim também? Algo que também perturbou Freud e que está revelado em uma breve cena autobiográfica relatada no texto sobre o estranho (ou o inquietante, Das Unheimliche): no solavanco do trem, uma porta se abre e Freud se assusta com a aparição súbita de um velhote desgrenhado vestido num roupão - logo se dá conta de que é ele próprio no espelho.
2) Parte dessa ideia já está em Walter Benjamin, em Rua de mão única, quando ele escreve que "a obra é a máscara mortuária da concepção", ou seja, que a passagem ao ato da escritura é tanto um efeito de estranhamento consigo mesmo (a máscara) quanto uma cena de morte (um desdobramento da ideia que Hegel desenvolve no sétimo capítulo da Fenomenologia do espírito, que "a palavra é a morte da coisa"). Esse intervalo entre ato e intenção, ou, nas palavras anteriores de Freud, o intervalo triplo que leva da ideia ao ato e deste aos seus rastros, é fundamental para todo o projeto intelectual de Benjamin - sobretudo no que diz respeito ao confronto entre a aura e os traços, entre materialidade e imaterialidade, fugacidade e permanência, reprodutibilidade e acontecimento, etc. Mas também nos comentários de Benjamin sobre escritores: no caso de Robert Walser, por exemplo, Benjamin ressalta que sua escritura apresenta o ponto de vista do convalescente, sempre maravilhado, como se visse o mundo pela primeira vez.   
3) Em uma das seções de Fritz Kocher, seu primeiro trabalho publicado em prosa, Walser fala do escritor (mas do escritor como burocrata, como autômato) como um "hábil caçador", que mira e atinge o papel com suas palavras, superfície que sangra, transformando o escritor num "verdadeiro patife". Talvez a percepção inicial de Benjamin, em seu ensaio sobre Walser, tenha enfatizado o lado passivo dessa convalescência - um lado subalterno e menor que é, de resto, amplamente favorecido pela figura, pela carreira e pela recepção histórica posterior de Walser. Mas já no início, desde seus primeiros contos, Walser parece dar conta também do outro lado dessa dialética, o que permite aproximá-lo desse percurso que vai de Banville a Cormac McCarthy, Freud e Hegel, retornando a Benjamin. O escritor como convalescente de uma violência que ele próprio leva adiante, transformando a ideia em ato e, nesse processo, conjurando uma "máscara mortuária" (sou assim também?) que ele oferece ao mundo.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Étant donnés

 A última criação de Duchamp, de divulgação póstuma, chama-se Étant donnés - uma estrutura complexa que se esconde por trás de uma porta de madeira emoldurada por tijolos (coletados ao longo de anos pelas ruas de Nova York). Olhar esse corpo feminino nu e artificial é ter acesso a uma espécie de segredo, uma impressão que é reforçada pela postura que a obra exige do observador: é preciso olhar através de dois buracos feitos na porta. Essa obra estranha joga permanentemente com os opostos, com as aporias: sua condição de artefato "aberto à visitação" é confrontado por esse método restrito de apresentação (apenas uma pessoa por vez pode olhar pelo buraco); o corpo nu está ligado tanto à morte quanto ao desejo, pulsão de vida e pulsão de morte, pois é tanto cadáver quanto escultura. Existe de forma evidente um esforço de encenação nesse espaço tão restrito - um pequeno quarto que guarda um segredo e que está, ao mesmo tempo, meticulosamente preparado para ser invadido. Nada é o que parece ser - ou melhor, nada é apenas aquilo que parece ser, pois cada elemento da instalação de Duchamp leva a uma quantidade imensa de citações, referências, empréstimos e colagens. 
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Hanns Sachs, em seu livro Freud, mestre e amigo, de 1945, fala de uma história que Freud costumava contar: pela primeira vez na vida, um caipira chega num quarto de hotel. Na hora de dormir, tenta soprar a lâmpada do abajur, pensando se tratar de um lampião. Segundo Sachs, Freud fazia o seguinte comentário: "ao lidarem com o neurótico, se vocês atacarem somente o sintoma, estarão fazendo exatamente como esse homem. É preciso encontrar o interruptor" (Sachs, Freud, mon maître et mon ami, Denöel, 1977, p. 43-44). Na cena armada por Duchamp em Étant donnés essa metáfora pedagógica de Freud ganha uma materialidade surpreendente, não apenas por conta do lampião/lâmpada que a mulher segura, mas principalmente pelo arranjo físico da cena traumática e/ou onírica. O caipira, assim como o observador de Étant donnés, está preso numa situação que não lhe oferece nada de familiar - e aquilo que parece familiar (o lampião) é um embuste, uma armadilha, uma ficção (a lâmpada), que deve levar necessariamente a um elemento que lhe dá sustentação, mas que permanece secreto, recalcado (o interruptor). É preciso reconstruir o próprio desejo de conferir sentido ao que se vê tendo como parâmetro as leis dadas pela cena, e não aquelas que o caipira/observador leva consigo.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Mahler, Mann, Freud

Gustav Mahler, 1860-1911
Leiden é a cidadezinha que representa o emblema dos encontros de Freud com outros intelectuais e artistas de sua época. É o caso aqui de Mahler e, indiretamente, de Thomas Mann. Não são evidentes, mas se quiséssemos desenredar seus fios perceberíamos que o pensamento e a autoridade de Freud começam, de modo mais ou menos manifesto, a se difundir na cultura europeia.
Como escreve Katia Mann, que na primavera de 1911 encontrava-se em Veneza com o marido Thomas Mann, durante toda a agonia de Mahler "os jornais publicaram boletins sobre suas condições com intervalos de praticamente poucas horas, como se se tratasse de um príncipe reinante". O casal Mann habitava perto do célebre Hotel des Bains do Lido. Frederic Grunfeld escreve em seu livro Profetas sem honra: "Foi então que a atenção de Mann foi atraída para uma família polonesa, com as moças vestidas bastante rigidamente e um delicioso, belíssimo rapazola de cerca de 13 anos, vestido de marinheirinho, que ele se divertia a observar na praia". As férias de Mann foram interrompidas pela notícia de que o cólera, que poupara Freud na Sicília no ano anterior, deslocava-se para o norte, para Veneza. Foi nessas histórias que Mann inspirou-se para Morte em Veneza, escrito em 1912. O personagem central, Gustav von Aschenbach, apresenta uma semelhança indubitável com Gustav Mahler: "O luto que se seguiu à morte de Mahler chocou meu marido a tal ponto que ao descrever as características físicas de Von Aschenbach fez praticamente um retrato de Mahler", escreve Katia Mann.
Mas também é significativo recordar que Thomas Mann, em 1925, afirmará que "pelo menos um trabalho, o breve romance Morte em Veneza, foi composto sob a influência direta de Freud". Mais adiante, em 1936, irá declarar que "a psicanálise representou a maior contribuição à arte do romance".

Giancarlo Ricci. As cidades de Freud. Tradução de Eliana Aguiar. Jorge Zahar, 2005, p. 159-160.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Arquivo cultural do Ocidente

William Blake, Nabucodonosor, 1795
1) Ainda comentando a obra de Conrad, Edward Said fala de "um grande número de escritores africanos" que "depois de Conrad" "reescreveram O coração das trevas", num "processo sucessivo de respostas que ocorreu". Said usa também o exemplo de Mansfield Park, de Jane Austen, especialmente a passagem em que Sir Thomas Bertram, o dono de Mansfield Park, "tem de ir a Antígua, onde possui uma fazenda de cana de açúcar que obviamente se sustenta com trabalho escravo, para reabastecer os cofres da propriedade". Assim, a bela propriedade inglesa, conclui Said, "que significa repouso, calma e beleza, tem certa dependência em relação à produção de açúcar de uma colônia de escravos em Antígua" (A pena e a espada, tradução Matheus Corrêa, Unesp, 2013, p. 73-74).
2) O romance de Jane Austen, portanto, não é só sobre a Inglaterra, mas é também sobre o Caribe. "O ponto mais importante do imperialismo", afirma Said, "é que se trata de uma experiência de histórias interdependentes - a história da Índia e a da Inglaterra devem ser pensadas juntas". Junto com Conrad e Austen, Said comenta também E. M. Forster, Howards End: "Os Wilcoxes, donos de Howards End, são proprietários da companhia de borracha anglo-nigeriana. Sua fortuna vem da África. Mas a maioria dos críticos desse romance não menciona esse fato. Está lá no livro. Eu busco destacar esses aspectos do grande arquivo cultural do Ocidente, da mesma forma que procuro examinar os arquivos culturais de lugares como Austrália, África Setentrional, África Central, entre outros, para dizer que está tudo ali. Precisamos lidar com todo esse acervo. Talvez você se lembre de que a epígrafe de Howards End é "only connect". É importante relacionar as coisas umas com as outras" (p. 74).
3) No que diz respeito ao uso do arquivo e ao exercício de ler nos textos aquilo que os textos recalcam (a Nigéria, Antígua), a postura de Said é análoga àquela de Derrida ou Paul de Man. Mas sua ambição geopolítica o faz ultrapassar o ambiente restrito da pura textualidade. Um precursor evidente é Montaigne, especialmente quando Said fala em "multiplicação de pontos de vista" e "experiência de histórias interdependentes" (pois Montaigne afirma que também os europeus podem parecer "bárbaros" aos olhos dos "primitivos"). Essa mobilidade do ponto de vista está também e sobretudo em Marx, com sua releitura da dialética de farsa e tragédia em Hegel (no 18 de brumário Marx corrige Hegel e afirma que a história se repete, sim, mas diferida, deformada, monstruosa). As histórias estabelecem suas próprias releituras a partir de uma revisão de suas premissas - de um gesto de resgate desse "arquivo cultural" -, mostrando que todo emblema do poder, por mais vigoroso que seja, sempre tem os pés de barro (Daniel, 2, 31-45 - Daniel, afinal de contas, como semita que interpreta sonhos e denuncia o vazio do poder, é precursor tanto de Marx quanto de Freud).  

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A pena e a espada

Joseph Conrad, 1857-1924
David Barsamian: Você argumenta que a cultura tornou o imperialismo possível e cita William Blake: "As fundações de todo império são a arte e a ciência. Destrua qualquer uma das duas e o império sucumbirá. O império sucede à arte e não o contrário, como supõem os ingleses".

Edward Said: Acho que um dos principais defeitos da vasta literatura sobre o imperialismo na economia, na ciência política e na história é que se presta muito pouca atenção ao papel da cultura na manutenção dos impérios. Conrad foi uma das testemunhas mais extraordinárias disso. Ele compreende que o lucro não está exatamente no cerne da ideia de império, embora certamente seja um dos motivos. Mas o que distingue os impérios antigos - como o romano, o espanhol ou os árabes - dos impérios modernos, entre os quais se destacam o britânico e o francês do século XIX, é que estes são iniciativas sistemáticas, com um reinvestimento constante. Eles não chegam a um país, saqueiam-no e vão embora quando a pilhagem termina. E os impérios modernos requerem, como afirmou Conrad, uma ideia de colaboração, uma ideia de sacrifício, uma ideia de redenção. 

DB: Como você explica seu grande interesse por Joseph Conrad e sua obra? Você cita O coração das trevas com frequência.

ES: Não tenho interesse só em O coração das trevas. Nostromo, que considero um romance tão excelente quanto, publicado um pouco mais tarde, por volta de 1904, é sobre a América Latina. Conrad parece-me ser a testemunha mais interessante do imperialismo europeu. Ele era certamente um crítico ferrenho das espécies mais vorazes de império, como era o caso dos belgas no Congo. Porém, mais do que qualquer outro, ele compreendia o modo insidioso pelo qual o império contaminava não apenas os conquistados, como também os conquistadores. Ou seja, a ideia de serviço carregava uma ilusão capaz de seduzir e cativar as pessoas, uma forma de corrupção universal. Quando o assunto era o que chamamos hoje de libertação, independência, liberdade diante do colonialismo e do imperialismo, Conrad simplesmente não conseguia compreendê-lo. Essa era, na minha opinião, uma limitação quase trágica da sua pessoa.

(Edward Said. A pena e a espada. Diálogos com Edward Said por David Barsamian. Tradução de Matheus Corrêa. Editora Unesp, 2013, p. 69-72).