Viena, década de 1920 |
1) Uma relação de amor se estabeleceu entre Freud e Fliess, com seus componentes típicos: posse, ciúme, paranoia. Freud argumenta que a paranoia tem uma forte conotação homossexual (a perseguição, a violação, o entregar-se a uma força maior) e que envolve frequentemente um delírio de vigilância (basta pensar em O náufrago, de Bernhard, e em como o narrador se sente permanentemente vigiado e acossado pelo gênio do amigo). Foi exatamente o que Fliess imaginou ter acontecido com sua teoria sobre a bissexualidade inerente ao ser humano, que encontrou repercussão não apenas em Freud, mas em vários outros estudiosos envolvidos com a psicologia no início do século XX (como Otto Weininger, por exemplo). Em um de seus últimos encontros, na beira de um lago, Fliess chegou a pensar que Freud estava ali com a intenção de assassiná-lo.
2) Há uma série de analogias e espelhamentos nesse percurso: o caráter homossexual da paranoia em Freud se liga à teorização de Fliess sobre a bissexualidade; a dinâmica da amizade epistolar entre Freud e Fliess (feita de crescentes lapsos no que diz respeito às intenções e recepções, ou seja, as fronteiras entre aquilo que se escreve e aquilo que é lido - a reação de Fliess aos manuscritos de Freud ou as tentativas deste de interpretação de sonhos ou situações familiares de Fliess) ecoará também no futuro, no distanciamento que será tanto de ordem técnico-teórica quanto da ordem da experiência e da vivência (Freud foi um mapeador incansável, incapaz de permanecer no mesmo ponto durante muito tempo, o que não era o caso para Fliess, que passou anos envolvido com a hipótese da bissexualidade, primeiro de forma teórica e depois, longamente, de forma reivindicativa (quando acusou o mundo de plágio).
3) Freud por vezes apresentava um pendor para a auto-acusação típica do melancólico, e daí talvez sua constante movimentação de conceitos, disciplinas e discursos. Prova desse pendor para a auto-acusação melancólica é a citação de Shakespeare, "Trate cada homem conforme seu mérito, e quem escapará do açoite?" (Hamlet, ato II, cena 2, use every man after his desert, and who should scape whipping?), que Freud usa em Luto e melancolia e também em Dostoiévski e o parricídio. Para Freud, a completude da psicologia de Shakespeare fica evidente nesse exercício de simultâneo afastamento e aproximação da pequenez do humano (daí a "invenção do humano" de Bloom), o que se liga - ainda que indiretamente - ao extenso debate com Fliess sobre a bissexualidade (que é também um postulado que leva em consideração essa maleabilidade shakespeariana, essa capacidade de ir do apoteótico ao ínfimo num mesmo registro, numa mesma imagem). Essa oscilação repercute também na literatura contemporânea a Freud, com representantes tanto do lado apoteótico (Thomas Mann, Hermann Broch) quanto do lado ínfimo (Kafka, Walser).
Nenhum comentário:
Postar um comentário