terça-feira, 5 de setembro de 2023

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"Em 1960, Gombrowicz se encontra com Jacobo Muchnik, um dos grandes editores da Argentina, diretor da Fabril Editora, que pu­blicou o que havia de mais interessante na li­teratura europeia e norte-americana daqueles anos, por exemplo O apanhador no campo de centeio, de Salinger, La modification, de Butor, e ainda O estaleiro, de Onetti. Então, por reco­mendação de Ernesto Sabato, que estava em vésperas de publicar Sobre heróis e tumbas na­quela editora, Muchnik recebe Gombrowicz e lhe propõe a publicação de Ferdydurke, que não era reimpresso desde 1947, nos Libros del Mirasol, uma das primeiras coleções de livros de bolso da América Latina, uma coleção po­pular muito boa, em que saíram, entre outras coisas, O som e a fúria, de Faulkner, e O longo adeus, de Chandler. Muchnik, que conta essa história com muita sinceridade em suas memórias de Gombrowicz, propõe ao escritor fazer uma edição de dez mil exemplares e lhe oferece como adianta­mento um terço dos direitos.

“Isso é o de menos”, responde Gombrowicz. “Estou disposto a autorizá-lo a fazer essa edição se o senhor se comprometer a publicar outro livro muito importante que estou escrevendo. Os senhores me fazem um contrato de edição do Diário argentino e eu os autorizo a publicar Ferdydurke.” Muchnik responde que não pode se comprometer sem ter lido o livro. E en­tão, conta Muchnik, “sem desviar os olhos de mim, Gombrowicz enfiou a mão no bolso do casaco e extraiu duas páginas datilografadas, que me estendeu por cima de minha escrivaninha”. Muchnik sugere que as deixe com ele, para que as leia. “Não”, insiste Gombrowicz em tom cortante. “Dá para ler duas páginas num instante. Leia agora. Eu espero.” Então Muchnik começa a ler na frente de Gombrowicz, e “aquele texto”, diz Muchnik,

me fisgou desde a primeira frase. Mas quando terminei de lê-lo eu disse a ele, bom, é extraordinário, mas não posso me comprometer a publicar sem antes conhecer o livro inteiro. Gombrowicz não me respondeu, levantou-se. Por cima da escrivaninha recolheu suas duas páginas, murmurou alguma coisa que não sei se foi um insulto ou uma despedida, e sem mais girou sobre os calcanhares e saiu.

Preferiu não reimprimir Ferdydurke, não receber o dinheiro do adian­tamento, de que sem dúvida estava precisando, porque queria ver o Diário argentino publicado. E há a questão daquelas duas páginas escritas em caste­lhano. Um pequeno enigma: que páginas eram, quem as traduzira? Ou Gom­browicz as escrevera diretamente em castelhano?… Algo que diz respeito à ética de nossa literatura está presente nessa cena. E a história da relação de Gombrowicz com a língua argentina contém algo que diz respeito a todos nós e a nossa tradição literária"


Ricardo Piglia, "O escritor como leitor"

(Revista Serrote, disponível aqui)

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