domingo, 3 de setembro de 2023

Ovídio e seu rádio


Como na maioria dos livros de Anne Carson, os fragmentos de Short Talks também se apropriam de fatos históricos e personalidades documentadas. Entre fato e ficção, a poesia trabalha no regime daquilo que “poderia ter sido”, “poderia ter acontecido”, imaginando como sensações muito específicas podem aflorar em situações de angústia ou de júbilo. Quando escreve uma fala curta sobre Ovídio, por exemplo, Carson registra: 

I see him there on a night like this but cool, the moon blowing through black streets

Eu o vejo lá numa noite como a de hoje só que fresca, a lua soprando por ruas escuras

A noite de Ovídio no exílio é “como a de hoje”, próxima, ainda que afastada pelos séculos. “Ele come e volta para o quarto. O rádio está no chão [The radio is on the floor]. O luminoso mostrador verde soa baixinho. Ovídio senta-se à mesa; pessoas no exílio escrevem tantas cartas”. Mais uma vez a interferência entre épocas, com um objeto impossível tomado como algo de cotidiano no Império Romano do início da Era Comum. “Agora Ovídio está chorando [Now Ovid is weeping]. Toda noite por volta dessa hora ele bota a tristeza como um traje [he puts on sadness like a garment] e continua escrevendo”.

*

Em seu Collected Poems in English, Joseph Brodsky incorpora cinco traduções: dois poemas de Marina Tsvetaeva, e um de Osip Mandelstam, outro de Zbigniew Herbert e, por fim, um de Wislawa Szymborska. Uma das traduções de Mandelstam é seu poema "Tristia", de 1916, que evoca o exílio de Ovídio. A tradução é uma dupla homenagem: ao poeta latino que o próprio Brodsky admirava muito, a quem, inclusive, dedicou alguns poemas próprios (poemas muitas vezes epistolares, como aqueles de Ovídio); e também uma homenagem ao seu compatriota, que Brodsky considerava o maior poeta russo do século XX.

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