domingo, 20 de setembro de 2020

Língua morta, intempestiva


1) Corre um claro influxo nietzscheano na representação da I Guerra Mundial oferecida por Kusniewicz em Lição de língua morta: o protagonista, tenente que aos poucos morre de tuberculose em uma cidade do interior, volta e meia começa a pensar na degradação do ambiente histórico e da moral europeia, por vezes dividindo o mundo entre aqueles que seguem em direção ao abate de forma passiva e aqueles que se sentem prontos para fazer o que deve ser feito para a renovação do ser (de resto, são inúmeros os autores que falam do Zaratustra como leitura recorrente nas trincheiras durante o conflito - Wittgenstein, por sua vez, lia os Evangelhos recontados por Tolstói...).

2) Repare no complexo jogo de escalas dentro da cronologia: Kusniewicz, em 1977, publica um romance sobre a I Guerra Mundial dentro do qual se apresenta (sempre de forma "extemporânea", "intempestiva") uma encenação, um performance textual decorrente de certas ideias de Nietzsche de 1874 (precisamente a consideração Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida). Para além do próprio conteúdo da reflexão, portanto, a falta de encaixe entre gesto e realização, entre presente e passado faz parte da lição de Nietzsche atualizada por Kusniewicz (Derrida, Marx e Shakespeare: time is out of joint).

3) O tenente acompanha o trabalho de um contingente de prisioneiros russos: "trabalho também foi feito do outro lado do riacho, no pequeno cemitério onde, por ordem das autoridades militares, todos os cadáveres exumados ou nunca enterrados foram transportados, espalhados pela mata ou enterrados aqui e ali da melhor maneira possível: na orla dos campos e caminhos, perto dos trilhos, no pátio das fazendas. O tenente se aproximou para ver melhor. Mas imediatamente teve que tirar do bolso o lenço com o monograma bordado, levemente impregnado de água-de-colônia, e levá-lo ao nariz: o cheiro de podridão era muito penetrante. Os corpos sem nome, encontrados ou exumados, datavam de diferentes períodos" (p. 72-73). O choque não se dá apenas entre o lenço perfumado e o cenário de mortandade; está condensado também nessa variada proveniência dos corpos, indicando, mais uma vez, a sobreposição de temporalidades encenada pelo romance. 

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