1) Lendo Los casos del comisario Croce, um dos últimos livros preparados por Piglia antes de morrer (ele avisa na nota ao leitor que encerra o volume: "escrevi este livro usando um programa de escrita pelo olhar, o Tobii, uma espécie de máquina telepata"), relembro a alegria de conhecer o comissário Croce ainda em Blanco nocturno, em 2010. O modo como Los casos é construído já dá um amplo primeiro passo no prazer de lê-lo: os casos são razoavelmente independentes, saltando no tempo e no espaço, com breves mergulhos na biografia e no método de trabalho de Croce (com uma série de pistas que levam a outros momentos da obra de Piglia, também).
2) No caso-capítulo El tigre, Croce (narrado por Emilio Renzi, que aqui toma dianteira do relato) comenta as "relações familiares", comenta como frequentemente surpreendem por sua falta de lógica: "as relações de parentesco são as mais difíceis de classificar e de prever, tudo pode acontecer, suicídios por felicidade, assassinatos por amor, incêndios provocados por compaixão, assim é a vida, concluiu metafísico Croce" (Los casos, Anagrama, 2018, p. 144).
3) A ideia do "suicídio por felicidade" me pareceu familiar, talvez uma citação, sensação que se intensificou quando duas páginas depois Piglia/Renzi/Croce cita Kafka sem dar a fonte: "Já amanhece, há esperança, mas não para nós. Foi Croce que disse, ou o filho que velava o pai. Não importa, dá no mesmo, inclusive pode ter sido eu a terminar a história com essa frase" (p. 146). A frase anterior, de fato uma citação, vem do prólogo que Borges escreve para A invenção de Morel, de Bioy Casares. Borges elogia o rigor de "romance de peripécias" tal como praticado por Bioy; para isso, aponta os limites do "romance psicológico", "informe", dos russos e seus discípulos, nos quais nada é impossível: "suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para sempre, delatores por fervor ou por humildade..." (Borges, "Prólogo" In: Bioy Casares, A invenção de Morel, trad. Samuel Titan Jr, Cosac, 2006, p. 8).
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