domingo, 5 de maio de 2019

Uma frase de Borges

1) Lendo Los casos del comisario Croce, um dos últimos livros preparados por Piglia antes de morrer (ele avisa na nota ao leitor que encerra o volume: "escrevi este livro usando um programa de escrita pelo olhar, o Tobii, uma espécie de máquina telepata"), relembro a alegria de conhecer o comissário Croce ainda em Blanco nocturno, em 2010. O modo como Los casos é construído já dá um amplo primeiro passo no prazer de lê-lo: os casos são razoavelmente independentes, saltando no tempo e no espaço, com breves mergulhos na biografia e no método de trabalho de Croce (com uma série de pistas que levam a outros momentos da obra de Piglia, também).
2) No caso-capítulo El tigre, Croce (narrado por Emilio Renzi, que aqui toma dianteira do relato) comenta as "relações familiares", comenta como frequentemente surpreendem por sua falta de lógica: "as relações de parentesco são as mais difíceis de classificar e de prever, tudo pode acontecer, suicídios por felicidade, assassinatos por amor, incêndios provocados por compaixão, assim é a vida, concluiu metafísico Croce" (Los casos, Anagrama, 2018, p. 144).
3) A ideia do "suicídio por felicidade" me pareceu familiar, talvez uma citação, sensação que se intensificou quando duas páginas depois Piglia/Renzi/Croce cita Kafka sem dar a fonte: "Já amanhece, há esperança, mas não para nós. Foi Croce que disse, ou o filho que velava o pai. Não importa, dá no mesmo, inclusive pode ter sido eu a terminar a história com essa frase" (p. 146). A frase anterior, de fato uma citação, vem do prólogo que Borges escreve para A invenção de Morel, de Bioy Casares. Borges elogia o rigor de "romance de peripécias" tal como praticado por Bioy; para isso, aponta os limites do "romance psicológico", "informe", dos russos e seus discípulos, nos quais nada é impossível: "suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para sempre, delatores por fervor ou por humildade..." (Borges, "Prólogo" In: Bioy Casares, A invenção de Morel, trad. Samuel Titan Jr, Cosac, 2006, p. 8).   

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