terça-feira, 30 de abril de 2019

Aira, Dalí

Ao comentar Salvador Dalí - em um dos ensaios de seu livro Evasión y otros ensayos -, especialmente sua célebre frase "eu sou um gênio" (e seu célebre Diário de um gênio), César Aira afirma com que essa declaração Dalí questiona não só o estatuto do gênio, mas também o estatuto da primeira pessoa (Aira fala do "eu" como um shifter, mas sem mencionar Jakobson ou mesmo a discussão que faz Barthes do termo em um ensaio como "O discurso da história", por exemplo). A argumentação de Aira a partir de Dalí em torno do caráter deslizante do pronome pessoal se aproxima também das ideias de Benveniste a respeito (utilizadas também por Agamben em O que resta de Auschwitz - a partir da heteronímia de Fernando Pessoa).
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O "eu" de Dalí é, na linguagem de Aira, um procedimento, algo que permite fazer da arte um jogo - o "eu" se refrata e se recusa e, nesse processo, reinventa os acessos possíveis à tradição (tradição do eu e do gênio). No último parágrafo do ensaio, Aira retoma outra frase de Dalí, um paradoxo de incrível produtividade: La unica diferencia entre yo y un loco, es que yo no estoy loco (é preciso aqui manter essa repetição do yo). Aira afirma que a palavra-chave aqui é "única", a "única diferença". Não se trata de identidades ou diferenças em bloco, escreve Aira, e sim da multiplicidade segregada da unidade. Entre Dalí e um louco existem incontáveis semelhanças e diferenças: Dalí aceita todas as semelhanças e das diferenças escolhe apenas uma, "e o fato de que esta coincida com a totalidade não impede que siga atuando a delicada separação de essências", e assim termina o ensaio.  

O paradoxo reside no fato de que a escolha da "única diferença" incide diretamente sobre a totalidade de um contato entre o sujeito e a loucura - o paradoxo ajuda a esclarecer em que medida o "eu" escapa de sua essencialidade auto-evidente, uma essencialidade que é artificial e construída (uma totalidade que o paradoxo de Dalí ao mesmo tempo rompe e sustenta, como na Aufheben de Hegel, que acarreta um processo de simultâneo cancelamento e suspensão, soterramento e evidência, preservação e mudança). 

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