sexta-feira, 6 de julho de 2018

Viagem sentimental

Não sou socialista, sou freudiano.
Uma pessoa está dormindo e escuta tocar a campainha na porta de casa. Ela sabe que precisa se levantar, mas não quer. E assim ela inventa um sonho, insere nele esse som e lhe dá uma outra motivação - por exemplo, ela pode sonhar que está ouvindo as matinas.
A Rússia inventou os bolcheviques como um sonho, como uma motivação para a debandada e o saque; os próprios bolcheviques não têm culpa de terem sido sonhados.
Mas quem estava tocando a campainha?
Talvez a revolução mundial.

(Viktor Chklóvski, Viagem sentimental. trad. Cecília Rosas, Editora 34, 2018, p. 93-94)

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É precisamente a partir da década de 1830 que se pode observar a emergência de um “contra-sonho” - a visão da cidade arrasada, a fantasia da invasão dos citas e dos vândalos, dos corcéis mongóis a matar a sede nas fontes dos jardins das Tulherias. Desenvolve-se uma estranha escola de pintura: quadros de Londres, Paris ou Berlim vistas como ruínas colossais, edifícios famosos queimados, saqueados ou localizados em uma desolação misteriosa entre restos esturricados e águas estagnadas. A fantasia romântica antecipa a promessa vingativa de Brecht, de que nada restará das grandes cidades exceto o vento que sopra através delas. Exatamente cem anos depois, essas colagens apocalípticas e esses desenhos imaginários do fim de Pompéia se transformariam em nossas fotografias de Varsóvia e Dresden. Não é necessário a psicanálise para sugerir o quanto havia de realização de desejos nessas sugestões do século XIX. 

(George Steiner. No castelo do Barba Azul: algumas notas para a redefinição da cultura. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 29-30)

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