sexta-feira, 31 de março de 2017

Uma luz em meu ouvido, 5

Elias Canetti, em Festa sob as bombas, sua autobiografia que dá conta dos "anos ingleses", escreve em determinado momento:

Quando penso na Inglaterra, recordo sempre as pessoas com quem tive, durante anos, conversas exaustivamente insípidas. Não são poucas, uma considerável parte de minha vida ali naquela época consistia em tais conversas. Para muitas pessoas me tornei uma espécie de vício, a que não conseguiam resistir. Mas eu não era menos viciado, já que sempre me achava outra vez disposto a consentir com essas conversas de horas a fio. 

Ouvia bem por muito tempo, era honesto nisso, mas não se tratava apenas de pura honestidade, ouvir tudo que as pessoas queriam contar de si era também a minha paixão. 

Com isso me comportei a vida toda como a espécie de seres humanos que mais profundamente desprezo: os analistas. Eu próprio era mais ouvinte do que analista, e ouvi tanto que haveria algumas centenas de volumes para escrever, caso ainda lembrasse de tudo. 

(Elias Canetti, Festa sob as bombas. trad. Markus Lasch. Estação Liberdade, 2009, p. 103).


Canetti, um viciado em ouvir. É um procedimento muito utilizado por Canetti ao longo de sua obra: desviar a atenção do leitor - seja em sua ficção, seja nos ensaios ou nos escritos autobiográficos - da sua pessoa, Canetti, e defender a tese de que sua posição privilegiada é um mero acaso, um acidente. Na primeira página de seu livro Wittgenstein's Vienna Revisited, Allan Janik escreve que ao receber o Prêmio Nobel, Canetti frisou que aceitava tal honraria em nome de outros quatro escritores que não a receberam: Karl Kraus, Franz Kafka, Robert Musil e Hermann Broch (a íntegra da fala de Canetti está no site do Nobel).

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