sexta-feira, 24 de março de 2017

Uma luz em meu ouvido, 4

A história de Wittgenstein como professor primário e seus episódios de violência contra alguns alunos é relatada também por Paul Auster no romance Desvarios no Brooklyn. "Descobri-me diante de um livro envolvente e muito bem escrito", diz o narrador do romance, e continua: "mas uma história se destacou das demais e nunca me esqueci dela. Segundo conta Ray Monk, autor da biografia, depois que Wittgenstein escreveu seu Tractatus, na qualidade de combatente da Primeira Guerra Mundial, ele achou que havia resolvido todos os problemas da filosofia e encerrado o assunto para sempre".

A retomada de Auster é feita com o uso de elipses que servem para dar um efeito dramático à "busca pelo perdão" de Wittgenstein que acontecerá alguns anos depois. Mas Auster também usa elementos de outros pontos da biografia para compor sua reescrita - a ideia de resolver todos os problemas da filosofia sempre esteve presente para Wittgenstein, mas nunca como uma certeza, e certamente não é essa certeza que o faz abandonar a filosofia depois da guerra (Monk fala mais no desespero e falta de rumo experimentados por Wittgenstein depois da guerra - inclusive a falta que a guerra lhe fazia, já que usou o uniforme durante meses depois do fim da guerra).

E Auster continua: "Logo depois, assumiu o posto de professor primário numa remota aldeia nas montanhas austríacas, mas se revelou incapaz de ensinar. Severo, mal-humorado, até mesmo brutal, vivia o tempo todo zangado com as crianças e batia nelas quando não conseguiam aprender as lições. E não eram punições meramente rituais, eram pancadas na cabeça e no rosto, sovas iradas que acabaram causando ferimentos graves em diversos alunos."

"Incapaz de ensinar" é certamente um exagero. Alguns alunos respondiam bem ao método "incisivo" de Wittgenstein, e ele dedicava horas complementares de lições individuais para essas crianças, especialmente um menino chamado Karl Gruber. Escreve Monk: 

"the one bright spot in Wittgenstein's life during the summer term of 1921 was his relationship with one of his pupils, a boy from one of the poorest families in the village, called Karl Gruber. Gruber was a gifted boy who responded well to Wittgenstein's methods." (p. 201).

E continua Auster: "Não demorou para que começassem a circular rumores sobre essa sua conduta vergonhosa e Wittgenstein foi obrigado a renunciar ao posto. Passaram-se vários anos, no mínimo vinte, se não me engano, e àquela altura o filósofo morava em Cambridge, de novo às voltas com a filosofia, já então um homem famoso e respeitado. Por motivos que agora me escapam

É a segunda vez em poucas linhas que o narrador de Auster coloca em xeque sua própria capacidade de remeter de forma precisa àquilo que é narrado por Ray Monk

ele passou por uma crise espiritual e sofreu um esgotamento nervoso. Quando começou a se recuperar, decidiu que a única forma de recobrar a saúde era marchar de volta ao passado e, com toda a humildade, pedir perdão a cada uma das pessoas que ofendera ou com quem fora injusto. Ele queria purgar a culpa que estava virando uma pústula infectada dentro dele, queria limpar a consciência e começar de novo.

A imagem da pústula é exagerada.

E essa estrada, é claro, o levou de volta à pequena aldeia nas montanhas da Áustria. Todos os seus antigos alunos já eram adultos, homens e mulheres de vinte e tantos anos. Entretanto a lembrança do professor violento não se havia apagado com o correr dos anos. Wittgenstein bateu na porta de seus antigos discípulos, um a um, e pediu-lhes que o perdoassem pela intolerável crueldade de duas décadas antes. Diante de alguns, ele literalmente se pôs de joelhos e implorou a absolvição dos pecados que cometera. Seria de imaginar que qualquer pessoa, perante uma demonstração tão sincera de contrição, fosse sentir piedade do peregrino sofredor. Mas de todos os antigos alunos de Wittgenstein, nenhum, homem ou mulher, se dispôs a perdoá-lo. A dor que ele havia causado calara muito fundo e o ódio que sentiam do professor transcendera toda e qualquer possibilidade de misericórdia". (Paul Auster, Desvarios no Brooklyn. trad. Beth Vieira, Cia das Letras, 2005, p. 68-69).

Não há qualquer menção aos joelhos de Wittgenstein na biografia de Monk. Ele relata que Wittgenstein "visitou ao menos quatro das crianças (possivelmente mais)" e que "alguns tiveram uma resposta generosa":

Wittgenstein astounded the villagers of Otterthal by appearing at their doorsteps to apologize personally to the children whom he had physically hurt. He visited at least four of these children (and possibly more), begging their pardon for his ill-conduct towards them. Some of them responded generously, as the Ottenthal villager Georg Stangel recalls. (p. 370).

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