domingo, 16 de fevereiro de 2014

Um processo medonho

Escrever é um processo medonho. Provoca coisas medonhas. Lembro uma vez, anos atrás, minha mulher e eu estávamos no Sudoeste americano, e entramos em contato com o nosso amigo Cormac McCarthy, e dissemos que íamos estar em Santa Fé. Mas El Paso, onde ele morava, era longe demais para irmos até lá, e assim ele disse que iria até Santa Fé e nos encontraria lá. Ele foi, e passamos um final de semana juntos num hotel da cidade, e foi ótimo, somos bons amigos. Mas ele estava trabalhando na parte da manhã, e no primeiro dia ele desceu para almoçar com a cara acinzentada, os olhos vidrados, a barba por fazer, parecendo um matador, e depois perguntei para a minha mulher: "Sou assim também?". E ela respondeu: "O tempo todo, quando está escrevendo". Foi um choque e tanto para mim. Ele parecia mesmo que tinha acabado de matar alguém. A minha mulher disse que viver com um escritor é como viver com alguém que acaba de voltar de um assassinato especialmente sangrento.

(John Banville em Ramona Koval, Conversas com escritores, tradução de Denise Bottmann, Globo, 2013, p. 354).
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1) O trecho de Banville condiz com a intuição de Freud: alguns escritores alcançaram, através da "intuição", certas "verdades psicológicas" que descobriu somente depois de muito trabalho. Em Moisés e o monoteísmo, Freud fala da escritura - sua criação e sobretudo sua "deformação", ou seja, a citação - como uma espécie de "assassinato", acrescentando que o difícil não é o ato, mas a eliminação dos rastros. A escrita como cena de um encontro violento com o outro (ou com o Outro, para Lacan e Zizek), esse outro que é apropriado, citado, transformado - algo que fica exemplificado nesse estranhamento de Banville diante de McCarthy: sou assim também? Algo que também perturbou Freud e que está revelado em uma breve cena autobiográfica relatada no texto sobre o estranho (ou o inquietante, Das Unheimliche): no solavanco do trem, uma porta se abre e Freud se assusta com a aparição súbita de um velhote desgrenhado vestido num roupão - logo se dá conta de que é ele próprio no espelho.
2) Parte dessa ideia já está em Walter Benjamin, em Rua de mão única, quando ele escreve que "a obra é a máscara mortuária da concepção", ou seja, que a passagem ao ato da escritura é tanto um efeito de estranhamento consigo mesmo (a máscara) quanto uma cena de morte (um desdobramento da ideia que Hegel desenvolve no sétimo capítulo da Fenomenologia do espírito, que "a palavra é a morte da coisa"). Esse intervalo entre ato e intenção, ou, nas palavras anteriores de Freud, o intervalo triplo que leva da ideia ao ato e deste aos seus rastros, é fundamental para todo o projeto intelectual de Benjamin - sobretudo no que diz respeito ao confronto entre a aura e os traços, entre materialidade e imaterialidade, fugacidade e permanência, reprodutibilidade e acontecimento, etc. Mas também nos comentários de Benjamin sobre escritores: no caso de Robert Walser, por exemplo, Benjamin ressalta que sua escritura apresenta o ponto de vista do convalescente, sempre maravilhado, como se visse o mundo pela primeira vez.   
3) Em uma das seções de Fritz Kocher, seu primeiro trabalho publicado em prosa, Walser fala do escritor (mas do escritor como burocrata, como autômato) como um "hábil caçador", que mira e atinge o papel com suas palavras, superfície que sangra, transformando o escritor num "verdadeiro patife". Talvez a percepção inicial de Benjamin, em seu ensaio sobre Walser, tenha enfatizado o lado passivo dessa convalescência - um lado subalterno e menor que é, de resto, amplamente favorecido pela figura, pela carreira e pela recepção histórica posterior de Walser. Mas já no início, desde seus primeiros contos, Walser parece dar conta também do outro lado dessa dialética, o que permite aproximá-lo desse percurso que vai de Banville a Cormac McCarthy, Freud e Hegel, retornando a Benjamin. O escritor como convalescente de uma violência que ele próprio leva adiante, transformando a ideia em ato e, nesse processo, conjurando uma "máscara mortuária" (sou assim também?) que ele oferece ao mundo.

2 comentários:

  1. E pra vc? Vim aqui ler o que você acha de escrever....hehehe foi o que me atraiu no título! =)

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  2. Ally!
    Pois é, aqui eu só falo através da voz dos outros...

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