quinta-feira, 5 de julho de 2012

Sobre algo que não é seu

Um fragmento de Vodu urbano, o livro de Cozarinsky. O título do fragmento é Glad Blues, e sua epígrafe vem de Barthes, do Barthes de Sade, Fourier e Loyola. A citação de Barthes é clássica e emblemática:
A verdade é que hoje já não há mais nenhum espaço linguístico fora da ideologia burguesa. Nossa língua provém dela, retorna a ela, nela se encerra. A única reação possível não é nem o desafio nem a destruição, mas, simplesmente, o roubo: fragmentar o antigo texto da cultura, da ciência, da literatura, e disseminar suas marcas em fórmulas irreconhecíveis, da mesma forma como que se falsifica uma mercadoria roubada.
1) Dentre todas as citações que formam Vodu urbano essa a que mais se destaca - posicionada no centro da narrativa, carrega de sentido não apenas o fragmento que precede, mas também tudo que veio antes e tudo que virá depois. Barthes oferece, sem preâmbulos, o nome do procedimento: roubo. E Cozarinsky rouba não apenas da "cultura", mas também de sua própria memória (em seus fragmentos autobiográficos chama a si mesmo sempre de "ele"), mostrando que as fronteiras entre os dois campos são sempre fabricadas, artificiais - pois a tradição é sempre alcançada através de uma memória, de um corpo (outra lição de Barthes).
2) Como já fez Alan Pauls com o desenhista Lino Palacio, Cozarinsky ataca a sua própria memória através das cenas inaugurais - em seu caso, as páginas da revista Billiken, o lugar em que "o antigo texto da cultura" pela primeira vez se manifestou. Os anúncios da revista serviam, para o menino que Cozarinsky cria em sua memória, como uma espécie de contraponto para o mundo exterior, um guia para a descoberta de sensações - como vemos também em Barthes, no Barthes de Mitologias
3) Os fragmentos de Vodu urbano, assim como as últimas novelas de Alan Pauls, procuram o resgate dessa sensação de que o mundo - o antigo texto da cultura - é uma criação privada (a criança que, assombrada, imagina que tudo ao seu redor é seu, fruto de sua imaginação). A volta do parafuso está na reconstrução artística desse momento - o escritor falsifica a própria memória, realizando um enxerto, uma anomalia. Essa anomalia é justamente a consciência de que o mundo, longe de ser uma criação recente, é um substrato arcaico sem fim nem começo - sobre o qual se age para "disseminar suas marcas em fórmulas irreconhecíveis".   

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