segunda-feira, 16 de julho de 2012

Lukács e as abelhas

O velho Lukács tinha sua razão ao estranhar o jovem Lukács. Esse Lukács de vinte e nove anos, que está escrevendo a Teoria do romance, alcança com frequência um tom fortemente metafórico, por vezes quase delirante. Ele começa um parágrafo da seguinte forma:
A psicologia do heroi romanesco é o campo de ação do demoníaco.
Ainda não sabemos quem recebe essa influência demoníaca - se é o escritor, no momento de escritura do romance, se é o leitor comum, no momento em que se relaciona com o heroi, se é o crítico, diante da tarefa de destrinchar essa psicologia do heroi romancesco, ou se são todos esses, em camadas, e essa influência do demônio seria aquilo que chamamos de história da literatura. Lukács continua:
Os homens desejam meramente viver, e as estruturas, manter-se intactas; se os homens, por vezes acometidos pelo poder do demônio, não excedessem a si mesmos de modo infundado e injustificável e não revogassem todos os fundamentos psicológicos e sociológicos de sua existência, o distanciamento e a ausência do deus efetivo emprestaria primazia absoluta à indolência e à autossuficiência dessa vida que apodrece em siêncio.
O demoníaco é uma constante na história da literatura ocidental - desde as fundações bíblicas até Baudelaire, Dostoiévski, Herman Melville (Moby Dick é um tratado de metafísica, escreve Borges, a baleia sendo, simultaneamente, o mal absoluto e a redenção), Cormac McCarthy (segundo Harold Bloom, o Juiz Holden, de Blood Meridian, é uma figura do demoníaco). E Lukács, diante disso, encerra seu parágrafo:
Súbito descortina-se então o mundo abandonado por deus como falta de substância, como mistura irracional de densidade e permeabilidade: o que antes parecia o mais sólido esfarela como argila seca ao primeiro contato com quem está possuído pelo demônio, e uma transparência vazia por trás da qual se avistavam atraentes paisagens torna-se bruscamente uma parede de vidro, contra a qual o homem se mortifica em vão e insensatamente, qual abelhas contra uma vidraça, sem atinar que ali não há passagem.
Mistura irracional de densidade e permeabilidade?
A alma esfarelada como argila seca?
Não há dúvida de que o jovem Lukács procura se aproximar, a partir de seu próprio texto, da concatenação de suas ideias e de sua sintaxe violenta - a sintaxe do jovem é uma espécie de apneia -, do poder demoníaco que tenta descrever. Em sua denúncia da insensatez inerente à alma do heroi romanesco há qualquer coisa da sabedoria de Salomão - que sente pena do homem que toma paredes por "atraentes paisagens". E sua imagem das abelhas contra a vidraça - o homem que não atina que não há passagem - ecoa na frase de Baudrillard: A própria impostura e a intoxicação não fazem parte do virtual? Não sabemos. Sempre a velha história da mosca que se choca contra a evidência incompreensível do vidro.

Georg Lukács. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 92.

Um comentário:

  1. Meu querido parece que vc está buscando encontrar um "chifre na cabeça de um cavalo" a dimensão demoníaca que faz parte da psicologia do herói romanesco só pode ser entendido com a análise que Lukács faz das epopeias gregas. A esfera do demoníaco está estritamente relacionado a contradição entre o herói e as estruturas sociais e como consequência dessa contradição o Herói tende a voltar a si mesmo em busca de um sentido à vida. Portanto a natureza demoníaca que o autor se refere é consequência dessa busca individual que não apresenta nenhuma relação positiva com o substrato social. A dúvida e o fracasso pertencem a esfera do demoníaco e consequentemente do romance já a certeza e a unidade entre interioridade e exterioridade é característica da epopeia grega. Não há nenhum mistério nesse conceito.

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