sábado, 28 de julho de 2012

As coletas, os subterrâneos

Para começar, um trecho de Andrei Makine - o escritor volta a sua Rússia natal, depois de anos distante, vivendo na França, escrevendo em francês (escrevendo em francês sobre a Rússia). Ele escreve:
Os únicos lugares onde tive a impressão de um verdadeiro retorno foram as galerias do metrô e as passagens subterrâneas transformadas em bazar de miséria. Os velhos colocavam à venda objetos que gritavam terem sido arrancados de um apartamento, de um quarto onde sua ausência criara um vazio impossível de preencher. Não era a alegre miscelânea de uma feira de antiguidades, mas os vestígios de existências destruídas pelos novos tempos. Eu reconhecia a louça usada de uma xícara, a forma dos saltos de um par de sapatos, a marca de um rádio transistor... Destroços que tinham a idade da minha infância. Toda uma época resumida nas velhas mãos azuladas pelo frio. 

Andrei Makine. A terra e o céu de Jacques Dorme
Tradução de Celso Mauro Paciornik. 
Cosac Naify, 2010, p. 17.
1) Para cada geografia, uma relação com os objetos. Os vestígios materiais das vidas, com a variação dos espaços, contam histórias variadas. Na perspectiva do Paul Auster de Sunset Park, por exemplo, os objetos encontrados nas casas abandonadas são testemunhas de uma postura vazia, inconsequente e infantil diante da vida, do consumo e das relações humanas - uma abundância esquizofrênica, uma acumulação desnorteada, absurda. 
2) Em Makine, os objetos parecem mudos, esgotados - testemunham a miséria justamente porque deles não se pode extrair mais nada, apenas o vazio (a paradoxal natureza oca do totalitarismo). Em Sebald, ao contrário, talvez por uma leitura mais insistente de Walter Benjamin, há sempre mais uma volta no parafuso - a barbárie se espelha na civilização e vice-versa. Em Sebald, ainda que enigmáticos, os objetos são também eloquentes - como os relógios antigos em Austerlitz, que motivam uma das reflexões mais produtivas de Jacques: O tempo, disse Austerlitz no observatório astronômico de Greenwich, era de todas as nossas invenções de longe a mais artificial (p. 102).
3) Para cada geografia, um uso dos objetos. Para Joseph Cornell, que viajava pelo mundo sem sair de Nova York, a eloquencia dos objetos só era acionada no contato entre eles. Dentro de suas caixas, Cornell contava histórias a partir da justaposição de artefatos estranhos entre si - ao contrário do colecionador do século XIX, aquele que Benjamin tem em mente durante a elaboração das Passagens, que acumula seguindo uma lógica prévia. Os objetos de Cornell, incompletos, anacrônicos e aleatórios, contam também a história da implosão dessa lógica.

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