sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Chatwin e a montagem de tempos

1) Calasso chama a atenção, paradoxalmente, para um Chatwin em repouso - ou seja, um Chatwin observado em seus momentos pré e pós viagens. Tratando-se de um sujeito que propõe uma anatomia da inquietude, na qual o nomadismo faz parte da fisiologia do escritor, essas pausas representam um ambíguo desconforto: são os momentos da vida cotidiana, não-exótica, mas são também os momentos de escrever seus livros, ver os amigos, coletar ideias, folhear os livros. O confronto entre a vida nômade e a vida em pausa, necessária para a escritura, é um confronto entre temporalidades, como aquele que acontece no esforço de memória que Aby Warburg realiza para escrever O ritual da serpente: sua viagem aos índios Hopi, realizada na década de 1890, é posta em discurso em inícios da década de 1920 - uma sorte de exercício de livre associação baseado em suas notas de trabalho e nas imagens que coletou.
2) Outro exemplo de trabalho criativo profundamente consciente desses percalços temporais é o de César Aira - basta observar a forma como Aira faz a datação de suas histórias: cada um de seus textos leva, ao final, a data específica de seu término, o que frequentemente não coincide com as datas de lançamento, formando, consequentemente, uma cronologia borrada, míope, cindida, rachada (a cronologia da escritura e a cronologia do mercado). Calasso cita um trecho de uma carta que Chatwin lhe escreveu. Enfrentava dificuldades com seu "livro australiano" (O rastro dos cantos) e conta que descobriu um caminho lendo um livro de Calasso: A ruína de Kasch. "O único caminho é o método do cut-up", escreve Chatwin em sua carta.
3) Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou. Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar. Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar. Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar. Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora. Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar. Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz. Eclesiastes, 8. 1-8.

2 comentários:

  1. Primeiro de tudo, surpresa ler o Eclesiastes aqui, justo aquele que formula o mais violento atentado à vaidade, que em geral é psicanalisado como narcisismo. Não é difícil entender por onde caminha o deslumbre etnográfico - e afins - com as diversas formas de possessão e transe que, via de regra, é a forma legítima de sair-de-si. O problema mais agudo, todavia, é que o momento nômade e o da pausa não tem a fronteira coincidente. Não são tão claros assim os momentos de pausa, e a duração não permite desenhar tudo pela cronologia e pela dominante da ação. Fosse assim, não haveria piedade em meio à guerra. Se você mesmo chamou a atenção para o Eclesistes, vale encerrar esta nota com o encerramento, versículos 14-15: "Compreendi que tudo o que Deus faz é para sempre. A isso nada se pode acrescentar, e disso nada se pode tirar. Deus assim faz para que o temam. O que existe, já havia existido; o que existirá, já existe, e Deus procura o que desapareceu". Temor e desaparição, aqui, já renderiam mais um montão de considerações. Mas chega de perturbar o doce traço que perfaz seu blog.

    Abração, Graus Kelvin.

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  2. Eclesiastes é um livro bom, estranho.
    A Bíblia tem aspectos estranhos que em geral são negligenciados. E por falar em possessão, há aquele fantástico relato de Jeremias sobre a ocasião em que foi violado por Deus.
    A coisa fica ainda mais interessante quando o texto bíblico vira glosa psicodélica da História imediata, como em Daniel.

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