sexta-feira, 23 de abril de 2010

O noturno da Itália (Sciascia e Bolaño)

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O noturno pode ser o sujeito que prefere a noite, que se movimenta pela noite. Também pode ser uma peça musical, em duas acepções: aquela que se toca à noite e aquela que evoca a noite. Os noturnos que evocam a noite costumam ser composições para piano solo. Noturno do Chile, de Roberto Bolaño, é uma composição de uma só voz – a voz do padre Sebastian Urrutia Lacroix. É também uma imersão na escuridão que era o Chile na década de 1970. O noturno da Itália é tocado por Leonardo Sciascia em A cada um o seu, de 1966 – uma peça a ser tocada na escuridão e que reflete em si, tal como fez Bolaño, toda a obtusidade de um país.
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A cada um o seu não tem a intensidade verborrágica de Noturno do Chile – mas compensa no humor e nas travessuras policialescas que dão em nada. Estão lá, nos dois, em quantidades abundantes: os detetives de ocasião, os literatos pedantes, as propostas absurdas, os despistes e o final aberto – “E depois se desencadeia a tormenta de merda”, finaliza Bolaño. “Um imbecil”, finaliza Sciascia. Bolaño conta a história do padre que é bolinado na varanda da mansão do grande crítico literário chileno. Sciascia conta a piada do padre que, questionado pelo arcebispo por conta da empregada que dorme na mesma cama que ele, responde que há uma tábua na cama, dividindo os espaços - “Mas e quando surge a tentação?”, pergunta o arcebispo, “Ah, aí é só retirar a tábua, senhor”, responde o padre.
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Os protagonistas são críticos literários nas horas vagas: o padre Sebastian de Bolaño é, como o próprio nome já diz, padre; Laurana, de Sciascia, é professor de italiano e latim e escreve resenhas literárias em jornais que ninguém lê. Nenhum deles é o ponto privilegiado das histórias – os acontecimentos simplesmente passam por eles, os atravessam, e tudo que temos é uma leitura torta e equivocada desse cenário ilegível. Aquilo que Sciascia trata como natural é tratado em Bolaño como adquirido – a América Latina é sempre um laboratório de testes, seja do nazismo, seja do jesuísmo.
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