O mercado editorial norte-americano tem um hábito muito interessante: volta e meia aparece uma nova tradução de um mesmo texto. Coetzee, em seu ensaio sobre Kafka presente na coletânea Stranger shores, faz uma análise da tradução feita pelo casal Edwin e Willa Muir. Faz também um cotejo com a tradução mais recente, assinada por Mark Harman. O casal Muir gostava muito de oferecer festas em sua casa de Connecticut, nas quais se reuniam jovens poetas, velhos escritores e emigrados europeus ligados à cultura. Ao contrário de Adorno, que odiava jazz e tudo que dizia respeito ao ambiente norte-americano, o casal Muir construiu uma sólida ponte entre Europa e América. Thomas Mann, na excursão que fez pela América na década de 1950 dando palestras (Philip Roth comenta em algum lugar o tremendo acontecimento que foi para ele ver Mann, ao vivo, em sua Universidade em Chigaco), passou também pela casa dos Muir. Um dia, aproveitando a aglomeração na praça no centro da cidade, por conta das eleições e dos protestos contra a Guerra da Coréia, Edwin e Willa tiveram a ideia de fazer uma placa: Franz Kafka for president. Parecia uma boa ideia de divulgação, afinal de contas – muito provavelmente a edição de O castelo, traduzido por eles, andava um pouco encalhada. Não fosse pelo disparo acidental de um repórter do Connecticut Post nunca compartilharíamos esse ato tão jocoso.
Nada mais kafkiano do que Kafka transformado em presidente dos Estados Unidos da América. Kafka como um dos líderes do kibutz dos ratos. No pescoço um relicário com a efígie de Josephine. Dono da tradição oral de um punhado de nômades no deserto, mudos e empoeirados. Estão lá: Beckett, Paul Celan, Walser e Coetzee, recém-incorporado – é o dia de sua iniciação. Os outros raspam sua cabeça e o deixam sob o sol durante três dias. As palavras que Coetzee pronuncia durante os delírios são anotadas e o papel fica embaixo de uma pedra durante sete meses. Alguns dizem setenta. Esse papel é o que chamamos tradição.
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