sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Conficção

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Sua apresentação estava marcada para as 17h10. Quando chegou, atrasado, um anônimo ainda falava sobre o lunfardo, o galego e palavras emprestadas. O trabalho sobre Wilcock, que levava debaixo do braço, teria de esperar: adiantaram uma das palestras (quando ele ainda não estava lá) porque o avião não podia esperar. O que estava marcado para 17h10 aconteceria uma hora depois. Depois do lunfardo, surgiu um professor macilento (nunca a palavra se aplicou tão bem, ele pensa, o sujeito era inteiro da mesma cor, pele, cabelos, roupas, um aspecto tísico, se possível) para falar de Benítez Rojo. Após, uma mulher insegura, de unhas roídas e cabelo lustroso, viajou de Belo Horizonte até Florianópolis para repetir conceitos de trinta anos atrás sobre o romance histórico. Chega, finalmente, a vez dele. A audiência é composta de quatro pessoas. O trabalho é cuspido, simplesmente. O único trecho que o satisfaz, durante a leitura, é a referência feita ao Evangelho segundo São Mateus, filme de Pasolini, do qual participaram, como figurantes, Giorgio Agamben, Natalia Ginzburg e Juan Rodolfo Wilcock. São Filipe, Maria de Betânia (irmã de Lázaro, o ressuscitado) e Caifás, o Sumo Sacerdote, respectivamente. Fora isso, tudo foi lido de um chofre, insensivelmente.

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A surpresa ficou para depois, na entrega dos certificados de apresentação. A moça sorridente e um pouco acima do peso, que entregava os papéis, disse a ele que a professora Denise, que finalizava uma palestra na sala ao lado, pediu que fossem apresentados. Havia uma espécie de presente para ele. Entrando na sala, desconfia do que lê projetado na parede: um trecho narrativo que fala sobre a guerra do Vietnã (no ônibus, atrasado, ele lia justamente a passagem de Summertime que menciona a fuga de Coetzee do serviço militar na África do Sul e sua expulsão dos Estados Unidos por participar de uma manifestação contra a guerra no Vietnã). "A narrativa é cindida", diz a palestrante. "A voz da personagem oitocentista é dúbia, oscilante", ela continua. O tema da apresentação é J. M. Coetzee e seu primeiro livro, Dusklands. Termina em seguida.

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Segue a rotina ridícula de praxe: leitura dramática de poemas no palco. Sem titubear (esperam por ele em casa), vai falar com a palestrante, já sentada nas cadeiras da platéia. Ele precisa mostrar a ela o trecho do livro (Summertime) no qual Coetzee afirma que o prefácio de Dusklands, assinado pelo pai do autor, é pura invenção. A cópia que ele tem do livro (e que agradece, sem palavras, cada vez que a manipula), diante de tal novidade, gera outra cópia, que seguirá viajando. Contudo, é a palestrante a responsável pelas novidades principais: Coetzee perdeu um filho, em um desastre de carro (e, depois disso, escreve O Mestre de Petesburgo, sobre Dostoievski perdendo um filho); foi casado durante muitos anos, teve dois filhos, e agora vive com uma mulher, que chama, quando a apresenta, de partner. O presente era uma sacola de papel com algumas revistas acadêmicas, oferecimento da Universidade que a professora representa a um de seus colaboradores. "Preciso reler Dusklands", ele pensa, no caminho para casa.

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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Vestimenta

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"Duchamp, que certa vez dissera a William Copley 'ter conseguido desenvolver seu parasitismo à perfeição', continuou vivendo com pouquíssimos recursos. O aluguel de seu estúdio na rua 14 custava ainda 35 dólares por mês. Tinha um único terno, que ele mesmo escovava e limpava. Quando ia passar o fim de semana com Teeny em Lebanon ou em Gardie Helm, na casa de uma amiga de infância de Teeny, em Easthampton, aonde eram frequentemente convidados durante os meses de verão, ele nunca levava uma valise. Costumava usar duas camisas, uma em cima da outra, e carregar uma escova de dentes no bolso do paletó."

Calvin Tomkins. Duchamp: uma biografia. p. 426.
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"Encontrar-se com Beckett é só um pouco menos difícil do que se encontrar com Godot, que, na peça, não aparece, ainda que todos esperem por ele. O endereço de Beckett em Paris é um segredo bem guardado e não mais do que uma dúzia de pessoas conhecem a localização de sua casa de campo. O dramaturgo é uma figura esguia, impressinante, que lembra um apóstolo inflamado. Mas ele não se importa com a aparência e, se parece que dormiu com as roupas que está vestindo (como, de fato, parece), não dá mostras de prestar maior atenção ao caso."

Israel Shenker. Entrevista com Samuel Beckett, New York Times, 1956.

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"John wasn't exactly a snappy dresser himself. One pair of good trousers, three plain white shirts, one pair of shoes: a real child of the Depression. But let me get back to the story."

Julia Kis
. In: Coetzee, Summertime, p. 34.
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"Otra persona sobria es mi amigo Juan Rodolfo Wilcock, que lleva años viviendo en el campo, en una casita sencilla, con pocos muebles, escasos cacharros y un estante de libros. Creo que en su guardarropa sólo hay dos viejas chaquetas, tres o cuatro camisas desgastadas, algún pullover agujereado y unos cuantos pantalones de pana: todo ello ropa comprada en mercados de segunda mano."

Ruggero Guarini. In: Wilcock, La sinagoga de los iconoclastas, p. 7.

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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Coetzee

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Leio o último livro de J.M. Coetzee, Summertime: um biógrafo vai atrás de figuras importantes na vida de um escritor chamado John Coetzee, que está morto. O que primeiro me assombra: a vastidão da consciência de Coetzee, que até de sua morte, e os desdobramentos ficcionais possíveis, cuida em vida (e obra). O jogo com as informações que foram dadas ao longo de anos e anos em outros livros, a reconstrução póstuma da obra, operada em vida e pelo autor, sem metaficção preguiçosa ou ironia pós-moderna. Uma verdadeira reflexão sobre o legado. Escrevendo sobre ele mesmo, no passado: why then does he persist in inscribing marks on paper, in the faint hope that people not yet born will take trouble decipher them?. A anotação data de 1972. Eu não era nascido em 1972.
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Vou precisar de muitas vidas dentro dessa que eu vivo para decifrar essa obra. O que intriga é o jogo suplementar entre forma e conteúdo que o Coetzee opera como ninguém mais faz. Diário de um ano ruim e agora Summertime: capítulos fragmentados, continuidade comprometida, sem afetação, com foco no relato, sem excesso, sem dispêndio gratuito de energia. A vida dos animais e Elizabeth Costello, mesma coisa: problematização das formas visuais de se organizar um relato, de se organizar os significantes, que, no fim das contas, potencializam o que ele efetivamente escreve. Não há dialética ou resolução possível dentro desse horizonte de contato entre forma e conteúdo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Dublinesca


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E não é que Beckett também está no próximo livro de Enrique Vila-Matas? Como se adivinhasse minhas atuais preocupações, o catalão, muito gentilmente, resolve escrever um romance que se passa em Dublin e articula a amizade de James Joyce e Beckett. O livro, Dublinesca, sai em março de 2010.


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Não posso pensar em outra coisa que não a amizade, ou ainda, a amizade mesclada de admiração: Joyce e Beckett ("nunca fui seu secretário; o ajudava por conta de sua vista, mas nunca escrevi suas cartas, por exemplo"), Vila-Matas e Paul Auster (Siri Hustvedt, esposa e escritora, também está na foto), e seus criativos contatos com Sophie Calle, a artista plástica, seja em Leviatã (dedicado a outro Amigo, Don DeLillo), seja em Exploradores del abismo - artista que englobou outros escritores em suas "ficções de parede": Ray Loriga, Jean Echenoz (que atualiza Perec de forma tão interessante em L'occupation des sols) - Vila-Matas e Sergio Pitol, essa amizade sim, mais parecida com a de Joyce e Beckett: Pitol mais velho, recebendo a visita de um Vila-Matas muito jovem em sua casa de Varsóvia - Pitol que é um grande Tio mais velho dos escritores mexicanos, seja Juan Villoro ou Ignacio Padilla (poucos livros são tão inteligentes quando Amphitryon), ou o melhor deles (que era, também, chileno): Roberto Bolaño. Os laços se multiplicam e não resta alternativa: é preciso embarcar na vertigem das filiações: Mario Bellatin leva a Joseph Roth; Edgardo Cozarinsky leva a Juan Rodolfo Wilcock; Ricardo Piglia leva a Luis Gusman; César Aira leva a David Toscana.

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São outros tempos, definitivamente: observe as lâmpadas de camarim, atrás de Vila-Matas, as cores vivas, a nitidez. Agora observe o casaco puído de Beckett, lá em cima, a granulação da imagem no sobretudo de Nathalie Sarraute ou os sapatos desbotados de Claude Simon. Dois futuros Nobel de Literatura em uma editora tão pequena: Editions de Minuit. Trata-se, como se houvesse qualquer dúvida, do tempo da montagem, da edulcoração, do espetáculo, da pose, da maquiagem, dos bastidores de talk-show, das transações milionárias - não que eu tenha qualquer coisa a dizer contra isso, só é curioso o abismo semiótico que se abre quando confrontamos duas imagens que teriam muito em comum (a amizade literária), mas cuja aproximação se detém, desconfiada, quase com repulsa.

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terça-feira, 29 de setembro de 2009

Perseguindo um significante

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1a) Em 1934, Samuel Beckett publica o conto Dante e a Lagosta. Está incluído na coletânea More Pricks than Kicks. Os contos desse livro são os melhores momentos do primeiro romance de Beckett, longo e verborrágico, que ele desmembrou e silenciou. O protagonista do conto chama-se Belacqua, vive em Dublin e estuda no Trinity College, como o jovem Beckett da época (28 anos). Perde-se em digressões eruditas sobre filosofia, patrística e literatura - está especialmente interessado, como Wittgenstein na mesma época, nos diferentes usos de um mesmo significante quando migra de contexto.
1b) Belacqua é um leitor, a Divina Comédia inicia o conto. Prepara uma lagosta para o jantar: ela está aí como um proto-signo da agonia, da espera, do vazio, da impossibilidade, da angústia e do silêncio. Este é o primeiro Beckett, Beckett antes de ser Beckett, e aparece uma lagosta, que será morta lentamente na água fervente, For hours, in the midst of its enemies, it had breathed secretly, a lagosta lutou na água, é o que ele diz no fim do conto, para morrer em agonia, em outra água: um familiar que é monstruoso.
1c) O pior está no fim (respiro fundo, essa é forte): Well, thought Belacqua, it's a quick death, God help us all. Uma morte rápida, esse é o consolo possível, se não pensamos muito na questão. As últimas palavras do conto aparecem, em seguida: It is not. Não, nada disso, você está enganado, a lagosta morre, você morre, não há nada, não há ninguém. Implosão de toda uma ontologia enganosa através de uma lagosta. Uma lagosta!
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2) O capítulo 10 de Alice no país das maravilhas é dedicado a uma dança da lagosta.
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3) David Foster Wallace retira a sutileza da alegoria de Beckett e transforma a lagosta em debate ético, quando questiona a naturalidade de se ferver um animal vivo: como foi possível socializar um gesto tão brutal? A pergunta é feita por conta do Festival da Lagosta do Maine, e integra um artigo que Wallace publica em agosto de 2004 na revista Gourmet. Mais tarde, o artigo nomeia seu livro de ensaios, Consider the Lobster. Sobrevive de Beckett esse embate contra a ignorância na qual chafurda a sociedade: é sempre mais fácil evitar pensar em certas coisas. It is not.
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4) Está tudo lá, em J.M. Coetzee, A vida dos animais, e também em toda argumentação e exemplo e ficção da velha ranzinza Elizabeth Costello. Lembrando que Coetzee ocupa um lugar central na apreciação crítica que acompanha as obras completas de Beckett (Paul Auster também está lá).
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5) Há uma cena do filme Simplesmente Amor na qual a mãe, Emma Thompson, dá os retoques finais na fantasia que a filha vai usar em uma apresentação de teatro na escola. É uma fantasia de lagosta. Pouco depois ela vai descobrir que o marido comprou uma jóia para a secretária, etc. Uma imagem terna e eficiente do cotidiano, como acontece nas últimas palavras daquele conto de Cortázar, Deshoras, que o narrador relembra um amor da infância, revive e repensa até que é atropelado pelo pato Donald: oía la voz de Felisa que entraba con los chicos y venía a decirme que la cena estaba pronta, que fuéramos enseguida a comer porque ya era tarde y los chicos querían ver al pato Donald en la televisión de las diez y veinte.
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segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Minima Moralia




1) Roberto Calasso observa (49 degraus), sobre a situação de Adorno quando escreve Minima Moralia, que "seu momento de máxima força criativa coincide com a situação de máxima vulnerabilidade" - pois Adorno recém havia chegado aos Estados Unidos, como milhares de outros, fugindo da Guerra. Sem dinheiro, e sem ter onde cair morto, teve que assimilar uma quantidade brutal de novidades sem poder pensar muito em suas limitações, sofrimentos ou preferências.
2) O método escolhido foi o aforístico - breve, conciso, de um só fôlego (quase como um blog que se escreve durante o trabalho), que já contava com larga tradição na língua alemã. Movimentos de dissecação muito precisos, que Adorno ensaia para abarcar a cultura em sua face monstruosa, midiática, multisensível, atabalhoada, que ainda nascia.
3) Isso foi em 1944. Ao longo de 1940, Walter Benjamin experimentou algo semelhante, porque fugia do nazismo, havia sido preso, e também lutava cognitivamente para apreender um estado de coisas delirante. Também com o gênero aforístico, às pressas: as teses que formam o ensaio Sobre o conceito de história foram escritas em pedaços de papel encontrados ao acaso, escritas sobre a coxa, escritas na penumbra, dentro de um trem, até que se juntaram em uma sucessão de iluminações.
4) Essa é a costura indissolúvel entre contingência e expressão (como os microgramas de Walser), e tanto Minima Moralia quanto as teses sobre a história (e o contexto que possibilitou...) sobrevivem ainda hoje, subterraneamente, como um capítulo em potência de uma história abreviada do pensamento portátil, talvez.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Ronald Firbank

1) Me persegue uma frase de Bartleby & companhia, em que alguém comenta: “entre meus autores preferidos estão Robert Walser e Ronald Firbank, e todos os autores preferidos por Walser e por Firbank, e todos os autores que estes, por sua vez, preferiam” (p.28). Ronald Firbank nasceu em Londres, 17 de janeiro de 1886. Morreu em Roma, 21 de maio de 1926 (ano em que Marinetti passeava pelo Brasil) - com 40 anos, portanto. Filho de lorde, viveu de herança. Viajou muito: Espanha, Itália, Oriente Médio, Norte da África.
2) Resta saber se foi ao sujo, como Flaubert ou Sir Richard Francis Burton, ou se foi ao turístico típico, como, sei lá, Cees Nooteboom (ou se viajou sem sair da cabine, como fez outro milionário, Raymond Roussel). Escreveu um livro que talvez esteja relacionado a isso: Sorrow in Sunlight, de 1925, rebatizado pelo editor como Prancing Nigger, ou seja, Nêgo saltitante - a trama transcorre em um país semelhante a Cuba ou o Haiti. Estudou em Cambridge, que abandonou antes de se formar. Escreveu contos, romances e peças de teatro. Virou católico com pouco mais de 20 anos de idade.
3) E nesse ponto aparece um livro que me faz pensar muito mais em Rodolfo Wilcock do que em Robert Walser para acompanhar Firbank nas preferências de Bartleby & companhia. Trata-se de Concerning the eccentricities of Cardinal Pirelli, de 1926, o único título de Firbank traduzido ao espanhol: De las excentricidades del Cardenal Pirelli. O religioso do título inicia o livro batizando um cachorro e finaliza-o correndo nu atrás de um coroinha. Um humor irlandês, talvez, à maneira de Flann O'Brien e Joyce e Beckett (um humor delirante como o de Hrabal), mas com um toque homossexual (há um artigo sobre Firbank intitulado o escritor de unhas vermelhas (Alan Hollinghurst o compara a Proust, inclusive)). Enfim, ainda muito a descobrir de Firbank.