quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

Dois sonhos



"Um animal sonhado por Kafka

'É um animal com uma grande cauda, de muitos metros de comprimento, parecida com a da raposa. Às vezes eu gostaria de segurar aquela cauda na mão, mas é impossível; o animal está sempre em movimento, a cauda sempre de um lado para outro. O animal tem alguma coisa do canguru, mas a cabeça pequena e oval não é característica e tem alguma coisa de humana; só os dentes têm força expressiva, quer os oculte ou os mostre. Costumo ter a impressão de que o animal quer amestrar-me; senão, que objetivo pode ter subtrair-me a cauda quando quero segurá-la, e depois esperar tranquilamente que ela torne a atrair-me, e depois tornar a saltar?'

(Franz Kafka, Hochzeitsvorbereitungen auf dem Lande, 1907)"

(Jorge Luis Borges, colaboração Margarita Guerrero, O livro dos seres imaginários, trad. Heloisa Jahn, Cia das Letras, 2007, p. 21)

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Num folheto avulso, de data ignorada, hoje na Biblioteca Jacques Doucet, Baudelaire descreveu o desmoronamento de uma imensa torre, que um dia se chamaria arranha-céu. Tinha uma sensação de impotência porque não conseguia transmitir a notícia às “pessoas”, às “nações”. Assim, tinha de se contentar em sussurrá-la aos “mais inteligentes”. Mas mesmo o sussurro precisou esperar mais de um século para ser impresso. E ninguém notou. As “nações” não perceberam a tempo o que as aguardava. Tudo se passara em sonho, num daqueles sonhos a que Baudelaire estava acostumado, aqueles que dão vontade de nunca mais dormir:

Sintomas de ruína. Edifícios imensos. Numerosos, um sobre o outro, apartamentos, quartos, templos, galerias, escadas, corredores, mirantes, lanternas, fontes, estátuas. — Fendas, rachaduras. Umidade que provém de uma cisterna situada perto do céu. — Como avisar as pessoas, as nações? — avisemos aos ouvidos mais inteligentes. Acima, uma coluna cede e as duas extremidades se deslocam. Ainda não desmoronou nada. Não consigo mais encontrar a saída. Desço, depois volto a subir. Uma torre-labirinto. Nunca consegui sair. Moro para sempre num edifício prestes a desmoronar, um edifício afetado por uma doença secreta. Calculo, dentro de mim, para me divertir, se uma massa tão prodigiosa de pedras, mármores, estátuas, paredes que estão para se entrechocar ficarão muito emporcalhadas com a grande quantidade de matéria cerebral, de carne humana e de ossos triturados.

(Roberto Calasso, O inominável atual, trad. Federico Carotti, Cia das Letras, 2020, p. 159-160)

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