1) O percurso que leva de Homero a Platão como o percurso que leva da oralidade à escrita: em Homero, as fórmulas mnêmicas trabalhadas e retrabalhadas pelo poetas itinerantes, ao longo de séculos; em Platão, a escrita em processo de internalização, fazendo parte constituinte, portanto, do pensamento e de sua organização - não mais as fórmulas orais que podiam ser rearranjadas dependendo do tempo que o vocalizador tinha à disposição (evidência de uma autoria coletiva e comunitária, como defendeu Vico), mas o sistema de um pensamento posto por escrito, que pode se basear em etapas aparentemente desconectadas.
2) A exclusão dos poetas da República, proposta de Platão, é indício precisamente desse embate entre oralidade e escrita: a exclusão é a solução narrativa de uma angústia diante de um modo tradicional de pensamento, um pensar oral agregativo e dependente da presença (e, por isso, limitado às condições temporais, atmosféricas); é precisamente esse tipo de limitação que Platão quer eliminar, a favor de um sistema de registro, manifestação e difusão que fosse lógico e dissecativo, e que pudesse garantir sua perduração (itens e subitens na argumentação de Platão são indício, de resto, dessa alfabetização do pensamento: unidades recombinantes por meio da visualização escrita).
3) A ambivalência de Platão com relação à escrita é também indício desse peculiar ponto que ele ocupou entre um sistema e outro, entre uma mentalidade e outra (a centralidade de Platão para o pensamento ocidental, de resto, é também indício da centralidade do alfabeto grego de uma forma geral, já que a inovação das vogais permite que esse alfabeto seja utilizado para a escrita de muitos outros idiomas). Homero, por isso, se torna canônico: é o modelo a ser ultrapassado precisamente porque já não pode ser acessado, que dirá ultrapassado, uma vez que diz respeito a um mundo (um modo de pensar, de experimentar o mundo) que não existe mais (mas que sobrevive, fantasmaticamente, na tessitura do novo pensamento escrito).
