sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Ainda o espirro


1) Em uma nota de rodapé da Seção 2 de seu ensaio História natural da religião, David Hume cita a História natural de Plínio para comentar a proliferação de divindades no contexto do paganismo; cita ainda Hesíodo e sua informação (Os trabalhos e os dias, I, 252) da existência de 30 mil divindades; acrescenta por fim que Aristóteles (Problemas, 7, 33) aponta que os domínios das divindades foram de tal modo tão subdivididos que havia até um deus dos espirros.

2) No mesmo livro, agora na Seção 12, também em uma nota de rodapé, Hume comenta especificamente a conduta de Xenofonte (grande capitão e filósofo, discípulo de Sócrates), prova "imediata e incontestável" da credulidade geral dos homens; aconselhado por Sócrates, Xenofonte consultou o oráculo de Delfos antes de se engajar, como mercenário, na expedição de Ciro (relatada por Xenofonte na "Anábase", que descreve a campanha militar de Ciro, o Jovem, contra seu irmão Artaxerxes II, rei da Pérsia, em 401 a.C. Xenofonte participou como mercenário nesta expedição, que envolveu um exército de dez mil gregos, e narrou a jornada de retorno após a morte de Ciro na Batalha de Cunaxa).

3) Já durante a expedição, Xenofonte teve um sonho na noite seguinte à captura do general, ao qual prestou grande atenção, mas que julgou ambíguo; em seguida, com todo o exército (escreve Hume), Xenofonte considerou que o espirro (não fica claro se é o espirro de uma forma geral ou se é o espirro de alguém específico) era um presságio muito favorável (o resgate do espirro é, na verdade, uma expansão do comentário sobre um texto de Plutarco no qual um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon, a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada).

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

50 desenhos


1) Depois de revisar o comentário que faz Cristina Rivera Garza sobre o livro de Alice Oswald, no qual resgata a Ilíada a partir dos soldados mortos, reencontro o manuscrito da Ilíada do século V com suas iluminuras, suas miniaturas - pouco mais de 50 desenhos sobreviveram, depois de recortadas e coladas em um segundo manuscrito, 600 anos mais jovem: as figuras foram, primeiro, desenhadas nuas e, posteriormente, cobertas com roupas de tinta (todas as imagens, aliás, cuidadosamente numeradas: seguindo a cronologia da história, seguindo o encadeamento e a sucessão das páginas) (Um adendo importante e revelador: boa parte das miniaturas são visíveis no site do Instituto Warburg). 

2) Sobre o projeto de Oswald, escreve Rivera Garza: "É, portanto, em primeira instância, uma pilhagem. A poesia olha de soslaio para a história e, com o bisturi na mão, retira do pântano de dados e anedotas o momento único e indivisível em que um ser humano perde sua vida. Afinal, isso é a guerra; é disso que se trata a guerra: como seres humanos de carne e osso perdem suas vidas violentamente. Armado, então, com os instrumentos da poesia, Oswald arranca essa perda que é a morte do acúmulo de dados ou de sangue que tantas vezes leva à indiferença, à insensibilidade ou a leituras desconexas" ("Usos do arquivo: do romance histórico à escrita documental", Os mortos indóceis, trad. J. R. Terron, WMF Martins Fontes, 2024, p. 150).

3) De resto, a pilhagem também é um tema homérico, parte constituinte do mundo da guerra homérica: viajar, conquistar, pilhar, retornar (nesse sentido, o procedimento poético de Oswald - semelhante àquele de María Negroni em livros como Archivo Dickinson ou Objeto Satie ou Cartas extraordinarias, precisamente o procedimento da pilhagem, do rearranjo do que já existe, etc - é homérico não só em seu tema ou conteúdo (os 200 soldados reiterados, singularizados), mas em sua dinâmica formal, na transformação da pilhagem em método de organização da poesia (que se desdobra em um segundo ponto fundamental: a enumeração, como aquela que faz o próprio Homero com as naus, por exemplo). 


domingo, 14 de setembro de 2025

200 soldados

Aquiles fazendo um sacrifício, "Ilias Picta"
manuscrito do séc. V, Biblioteca Ambrosiana

1) Em seu ensaio sobre os "usos do arquivo" na literatura (terceiro capítulo de seu livro Os mortos indóceis), Cristina Rivera Garza comenta um trabalho da poeta britânica Alice Oswald, Memorial. An Excavation of the Iliad, no qual ela descarta "sete oitavos" do poema de Homero, resgatando apenas as mortes: Oswald filtra o texto homérico a partir do critério das cenas de morte, deixando na superfície de seu próprio texto apenas o registro da morte de aproximadamente duzentos soldados. Toda morte que aparece em Homero é, ao mesmo tempo, geral e específica - diz respeito ao evento incontornável da morte, que chega a todos, mas diz respeito também às especificidades daquele destino (um destino que envolve, no âmbito do poema, a maestria de Homero no trato com os detalhes: a cabeça separada do corpo; o homem curvado como chumbo).

2) O objetivo principal de Rivera Garza no resgate do trabalho de Oswald (que pode ser lido em paralelo com aquele, mais celebrado e conhecido, de Anne Carson) é comentar e enfatizar a presença dos mortos, pelo viés da "vida precária" de Judith Butler (os soldados mortos como efeito colateral da manutenção do poder, da soberania e assim por diante); o que me interessa, por outro lado, é o modo como o procedimento poético de Oswald garante seu alinhamento a uma linhagem complexa e produtiva da história literária: o uso da forma breve para apreender um conjunto de vidas - uma linha associativa que abarca Vidas dos artistas de Vasari, Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, as Vidas minúsculas, de Pierre Michon, e assim por diante.

3) Oswald transforma os soldados de Homero em vinhetas biográficas; conta suas vidas na guerra a partir do evento da morte, apresentando seus nomes em caixa alta dentro dos versos do poema: PROTESILAUS, ECHEPOLUS, ELEPHENOR, SIMOISIUS, LEUKOS, DIORES, PIROUS, etc, como entradas de uma enciclopédia ou dicionário. É Oswald quem diz, no prefácio: "Minhas ‘biografias’ são paráfrases do grego; meus símiles, traduções. Entretanto, minha abordagem da tradução é bastante irreverente. Eu trabalho bem colado ao grego, mas em vez de transpor as palavras para o inglês, eu me valho delas como fendas através das quais se vê o que Homero estava mirando" (tradução aqui).

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Contra Flaubert



De fato, detesto Flaubert.

Só mesmo um macho francês

esnobe cheio de si

para zombar a tal ponto 

dos sonhos de uma mulher.

Um macho,

quer dizer, 

alguém que não sonha.

(Os homens sempre tiveram

ciúmes dos sonhos das mulheres

porque não podem controlá-los.)

Flaubert sonhou Emma Bovary,

mas pode-se dizer, com toda a certeza,

que Emma Bovary jamais sonhou Flaubert.

(No final de seus dias, Flaubert estava 

farto da fama de Madame Bovary.

Ela era mais célebre que ele.)


(Cristina Peri Rossi, "Contra Flaubert", Aquela noite (1996), in: Nossa vingança é o amor: antologia poética (1971-2024), edição bilíngue, seleção e tradução de Ayelén Medail e Cide Piquet, São Paulo: Editora 34, 2025, p. 110)

sábado, 6 de setembro de 2025

Alice, Lincoln, Ford


1) Além de incorporar, em uma das cenas de Alice in den Städten, a presença física de um dos livros de Peter Handke, Wim Wenders também incorporou um dos filmes de John Ford, Young Mr. Lincoln, de 1939, transmitido na televisão de um dos quartos de hotel no qual se hospeda o protagonista; esse filme, contudo, é a incorporação de uma incorporação: esse filme de Ford é citado por Wenders em seu filme porque é citado, anteriormente, em um romance de Handke de 1972, Breve carta para um longo adeus (a história de um jovem escritor austríaco que viaja pelos Estados Unidos em busca de sua esposa, de quem está afastado; Ford inclusive aparece como um personagem no fim da estrada na costa da Califórnia).

2) O mecanismo narrativo básico do filme de Wenders é o da incorporação: fragmentos alheios à cronologia progressiva do filme que são costurados à história; acontece com a capa de Handke e com o filme de Ford, mas acontece também - e sobretudo - com as fotografias instantâneas que o protagonista faz com sua Polaroid ao longo de todo o filme (a primeira cena mostra o protagonista olhando e rearranjando o conjunto das fotografias que tirou até aquele momento, um passado fragmentado que irrompe no presente da narrativa: um passado que pode ser reposicionado, montado, embaralhado, como nas lições de montagem de Aby Warburg e, na esteira desse, Georges Didi-Huberman).

3) Como na fotografia que surge na abertura de A invenção da solidão, de Paul Auster, é também uma fotografia - retirada da bolsinha que Alice leva no pescoço - que reconfigura o percurso do filme: o protagonista e a menina precisam seguir viagem para encontrar alguém que se responsabilize por ela; será a avó; a menina tem uma fotografia da casa (mas não sabe onde é); como no frame do filme sobre Terezín que Sebald incorpora em Austerlitz (a mãe que, aparentemente, surge veloz, como um relâmpago, reconfigurando o percurso/narrativa de Jacques Austerlitz), e eles começam a percorrer a Alemanha de carro em busca do referente real que faz jus à imagem e que permitirá a conclusão da história (que é, mais uma vez, suspensa, postergada, quando a casa finalmente aparece - quem mora lá, agora, é "uma italiana", diz a menina). 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Alice, 1974



1) Wim Wenders lança Alice in den Städten em 1974, uma celebração da fabulação infantil e da presença ilógica das crianças na sociedade, no mundo - uma espécie de desapego com relação aos dogmas e às verdades, como acontece na Rayuela de Cortázar (de 1963), ou ainda mais intensamente em Zazie dans le métro, de Raymond Queneau (de 1959): Alice mente (cria, ficcionaliza) sobre a própria vida, ou ainda, mente a própria vida, ao mesmo tempo em que não sabe nada - não sabe o nome de solteiro da mãe, não sabe o nome da avó ("o nome da minha vó é vó", ela diz). (No ano seguinte, 1975, Perec (que dedica Vida, modo de usar a Queneau) lança W ou le souvenir d'enfance).

2) Se é difícil ligar diretamente Sebald e Wenders (ainda que o primeiro fale do segundo em seu ensaio sobre o livro de Hanns Zischler, Kafka vai ao cinema - Zischler, de resto, que também foi ator, participou de filmes de Wenders), eles compartilham um elo intenso pela via de Peter Handke: é precisamente um dos livros de Handke comentados por Sebald em seus ensaios - Wunschloses Unglück, de 1972, sobre o suicídio da mãe - que Wenders coloca no filme, sobre uma mesinha de centro no apartamento em Nova York de uma ex-amante do protagonista, que recusa sua presença depois de um devaneio filosófico.

3) Assim como o narrador de Sebald, o protagonista de Wenders caminha pelas cidades com uma câmera, registrando não aquilo que se apresenta imediatamente ao olhar, mas o atravessamento entre um momento específico, irrepetível, e a subjetividade de alguém que vive aquele momento para escrevê-lo (junto com as fotografias, e junto com a câmera, o protagonista de Wenders manipula também sua caderneta, na qual elabora um texto interminável, um texto que só pode levá-lo à beira de um colapso nervoso - não por acaso a caderneta se transforma em plataforma para o jogo da forca, quando o protagonista brinca com a criança: sempre a morte, a finitude, the undiscovered country de Hamlet que Sebald tanto usou).