sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Os anos



1) A narrativa de Os anos, de Annie Ernaux, nos faz acompanhar o nascimento, crescimento e amadurecimento de uma mulher que conta sua história na terceira pessoa – até as últimas páginas do livro, quando a voz em terceira pessoa encontra seu “eu” no presente. Contudo, essa progressão alcança uma amplitude que faz a história expandir os próprios horizontes. Em paralelo à história dos anos de uma vida, encontramos também a história da Europa e da França, seus presidentes, suas crises de imigrantes, ataques terroristas, manchetes bombásticas da imprensa, morte de intelectuais e celebridades, enfim, um vasto contingente de detalhes que costuram a subjetividade da narradora ao cenário social mais amplo.

2) Ao longo desse percurso, muitos nomes são citados – Sartre, Simone de Beauvoir, Mitterand, Aldo Moro – e muitos eventos de ampla repercussão mencionados – da Libertação ao 11 de Setembro. Nessa perspectiva, o romance de Ernaux oferece uma sorte de retrospectiva indireta da cultura francesa ao longo da segunda metade do século XX. É possível recordar, por exemplo, o romance que Georges Perec lança em 1965, As coisas: uma história dos anos sessenta, livro de estreia do autor, com o qual vencerá o Prêmio Renaudot (que Ernaux receberá quase vinte anos depois). Encontramos em Perec o mesmo frenesi do consumo e da novidade que vemos na rememoração de Ernaux, com a diferença que Perec escreve no calor do momento.

3) O mercado de trabalho é outro personagem permanente em Os anos – a colocação profissional da narradora e de sua geração, em primeiro lugar, e, adiante, o cenário bem mais limitado reservado à geração de seus filhos. As críticas à burocratização da sociedade e o inchaço dos centros urbanos, que encontramos em Os anos, remetem a outro escritor francês que construiu sua fama inicialmente a partir de um retrato ácido desses ambientes: Michel Houellebecq. O autor, que lança Extensão do domínio da luta em 1994, pode ser visto como uma das tantas personalidades históricas que saem renovadas da narração de Os anos, tendo seus projetos pontuais de análise da realidade francesa vitalizados pelo movimento panorâmico que Ernaux oferece em sua obra.

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