segunda-feira, 27 de março de 2023

Inspetor, impostor


"Penso na peça de Gógol O inspetor geral. O inspetor geral é o inspetor do governo, e a peça, obra-prima do teatro russo do século XIX, conta como um falso inspetor desembarca numa cidadezinha de interior e engambela todo mundo. Promete, seduz, ameaça, sabe espremer cada um em seu tônus mais íntimo. Todos os que têm algo a se censurar temem evidentemente a inspeção e dão um grande suspiro de alívio ao descobrirem que há um meio de se entender com ele - amigavelmente, entre pessoas civilizadas.

As coisas fluem, tudo correndo bem até o último quadro, quando o inspetor desaparece. Procuram-no em toda parte, preocupados. É nesse momento que um criado entra no salão do prefeito e, com uma voz de trovão, anuncia a chegada do verdadeiro inspetor. Todos os atores, nesse instante, devem se congelar no palco, numa pantomima aterradora que Gógol, misto de gênio cômico e carola delirante, via literalmente como uma representação do Juízo Final. Gerações de espectadores russos se contorceram de rir dessa peça, obstinando-se a tomá-la como uma irresistível sátira da vida no interior.

Equivocaram-se redondamente, a crermos em seu autor, que até o fim de seus dias derreteu-se em prefácios moralistas para revelar seu verdadeiro sentido. A cidadezinha é nossa alma. Os funcionários corruptos, nossas paixões. O intimidante mancebo que se fez passar pelo inspetor e abocanhou propinas dos funcionários corruptos, prometendo fechar os olhos, é Satanás, príncipe deste mundo. E o verdadeiro inspetor é naturalmente Cristo, que chegará quando menos se espera, e então, ai daquele que não estiver limpo! Ai daquele que julgou acobertar-se fazendo negócios com o falso inspetor!"

(Emmanuel Carrère, O reino, trad. André Telles, Alfaguara, 2016, p.170-171)

Nenhum comentário:

Postar um comentário