A dissonância, que age no cerne da expectativa de leitura de Rosencrantz and Guildenstern Are Dead, vai ainda mais longe do que a simples retomada irônica de Hamlet: ao propor um exercício jocoso de metaficção (afinal de contas, RaGad depende perigosamente de um conhecimento satisfatório do universo shakespeareano - e uma reflexão, por breve que seja, sobre o que pode significar sua atualização em uma peça humorística do século XX), ao propor um exercício jocoso de metaficção, eu dizia, Stoppard está, também e ao mesmo tempo, alcançando um grau altíssimo de vitalidade, no sentido de efetivamente aproximar Hamlet da vida cotidiana.
Repare na consequência revolucionária do procedimento de Stoppard: Rosencrantz and Guildenstern Are Dead, ao se infiltrar nas tramas de Hamlet, retoma sua força estética de forma enviesada, oblíqua, mostrando o que poderia estar acontecendo (ou o que aconteceu, ou o que deveria ter acontecido - perceba que os tempos já começam a se embaralhar na enunciação de uma simples sinopse) por trás das grandes cenas, as cenas principais, escritas por Shakespeare.
A partir do momento em que Stoppard apresenta sua proposta disruptiva - "eu posso ver o que eles estão fazendo lá atrás" -, tudo passa a funcionar como se diante de um leve toque demoníaco: passamos a ver a peça de Shakespeare já de forma impura, sua ação já não é coesa e cada fala leva a incontroláveis implicações subterrâneas. O gesto de Stoppard está plasmado em Rosencrantz and Guildenstern Are Dead mas seu procedimento é inexaurível, ele circula pela tradição, fazendo-se e refazendo-se, procurando novos avatares, novas configurações (o gesto é análogo àquele de Duchamp com a Monalisa: mesmo depois dos bigodes, mesmo com a modelo "barbeada" - L.H.O.O.Q. rasée, de 1965 -, o quadro de Da Vinci jamais será o mesmo).
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