quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A cama de Van Gogh

A casa de Goethe
"Deve-se reconhecer que os povos chamados primitivos souberam elaborar métodos racionais para inserir, sob seu duplo aspecto de contingência lógica e de turbulência afetiva, a irracionalidade na racionalidade. Os sistemas classificatórios permitem, então, integrar a história; mesmo e sobretudo aquela que se poderia acreditar rebelde ao sistema. Pois é preciso não se enganar: os mitos totêmicos que compungidamente narram incidentes fúteis e que se enternecem com os lugares conhecidos não lembram, no que se refere à história, senão a pequena, a dos mais apagados cronistas. As mesmas sociedades cuja organização social e regras de matrimônio requerem para sua interpretação o esforço dos matemáticos e cuja cosmologia espanta os filósofos não veem solução de continuidade entre as altas especulações às quais se entregam nesses domínios e uma história que não é a dos Burckhardt ou dos Spengler mas a dos Lenôtre e dos La Force. 

E nada se parece mais, em nossa civilização, com as peregrinações que os iniciados australianos fazem periodicamente aos lugares sagrados, conduzidos por seus sábios, que nossas visitas-conferências às casas de Goethe ou de Victor Hugo, cujos móveis nos inspiram emoções tão vivas quanto arbitrárias. Aliás, como para os churinga, o essencial não é que a cama de Van Gogh seja exatamente aquela onde se afirma que ele dormiu; tudo o que o visitante espera é que lha possam mostrar"

(Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, trad. Tânia Pellegrini, Papirus, p. 270-271).

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Não é também o que busca Bruce Chatwin em seu Songlines, a aproximação dos sistemas de classificação, a aproximação das visões de mundo, quando observa justamente esses "iniciados australianos" em suas peregrinações através dos rastros dos cantos? Ou ainda, não é o que expõe Carlo Ginzburg quando fala de um "paradigma indiciário", de coleta, recolha e classificação, que possa associar o caçador/homem das cavernas aos detetives de Poe, Borges, Conan Doyle, Piglia, Walsh e Chesterton?

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