quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Os irmãos Tanner

1) Uma das primeiras sensações que o leitor alcança ao ler Robert Walser é que seus personagens não encaixam no tempo/espaço a eles destinado. Eles vivem vidas fora do compasso cotidiano, tradicional da sociedade - estão out of joint, para usar a nomenclatura de Shakespeare, Marx e Derrida. Isso é verdade também em Os irmãos Tanner, romance com elementos próximos à vivência do próprio Walser (os irmãos, a mãe com problemas mentais, a tensa relação entre a vida no campo e a vida na floresta). O manicômio, a loucura, são elementos que estão tanto no passado quanto no futuro de Walser no momento em que escreve Os irmãos Tanner e finalmente o publica em 1907.  
2) O protagonista do romance é Simon Tanner, o mais novo dos irmãos. Outros dois, o pintor e o acadêmico, surgem também em seguida, sem grandes preâmbulos. O quarto irmão, contudo, Emil, só é apresentado com o romance muito adiantado e de forma visivelmente construída, pensada para gerar surpresa no leitor - a história do irmão é contada a Simon por um estranho, em um bar, até o momento em que ele revela que o protagonista da história é seu irmão, que passou de jovem brilhante a interno de um manicômio. Nas últimas páginas do romance, Emil retorna, quando Simon faz uma espécie de retrospectiva de sua vida e suas relações:

Esse irmão infeliz era sem dúvida, posso dizê-lo com serenidade, o ideal de um homem jovem e belo; e talentos ele tinha, embora fossem antes apropriados ao século XVIII, galante e gracioso, do que a nossa época, com suas exigências mais áridas e duras. Permita que eu silencie sobre sua infelicidade, porque, em primeiro lugar, eu lhe arruinaria o humor. (Walser, Os irmãos Tanner, trad. Sergio Tellaroli, Cia das Letras, 2017, p. 277).
3) O tema da desrazão e o tema do tempo out of joint se articulam rapidamente em Emil Tanner, essa figura que Walser parece deliberadamente reservar para breves aparições, para, com isso, intensificar seu enigma (o enigma que será também o seu, o de Walser, no futuro). A sensação das vidas em descompasso dos personagens de Walser ganha, com Emil, uma especificação rara, bem pouco do feitio de Walser - seus talentos não servem à "nossa época", são apropriados ao "século XVIII, galante e gracioso". Sim, o século de Rousseau, o Rousseau da rêverie, do promeneur solitaire, leitura fundamental para Walser (como será para Sebald), força motriz de sua própria obra.

5 comentários:

  1. O mesmo tema tem tradição na história da literatura, não?: aparece em livros como Dom Quixote, O vermelho e o negro, Luz em agosto. Nestes dois últimos aparece outra temática relacionada: a solidão, a qual permite que o personagem "crie" o lugar onde quer estar. Hightower recorre ao passado, Julien, à sua imaginação. Sobre este último, Stendhal escreve: "Sua vida solitária feita de imaginação e desconfiança, afastara-o de tudo o que podia esclarecê-lo" (pag. 96)

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  2. Esse post me trouxe à memória Silvio Astier, personagem para quem o mundo também parecia abrasivo e hostil, desincronizado. "Vea amigo, el capitán Márquez me hablo de usted. Su puesto está en una escuela industrial. Aquí no necesitamos personas inteligentes, sino brutos para el trabajo." Baita post, Kelvin! Vida longo, cara! :D

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    1. Prezado, você tem toda razão. Arlt é o argentino out of joint por excelência.

      Veja só que interessante este trabalho que faz a ponte de Lima Barreto com Arlt, justamente com Silvio Astier:

      http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/041/KELI_PACHECO.pdf

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  3. Valeu, Kelvin! Favoritei o link do artigo. Obrigado pela sugestão! :D

    PS: Aqui é o Renato Eduardo. Tentei inserir meu nome no comentário acima, mas por algum motivo que ignoro o post acabou sendo registrado de forma anônima, rsrs.

    Boa sexta-feira, mestre!
    Abração!

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