A paisagem inglesa |
Como sabemos, Os anéis de Saturno, de Sebald, tem como subtítulo "uma peregrinação inglesa" (do latim per agros, isto é, pelos campos). Por isso as caminhadas do narrador pela região de Suffolk, no leste da Inglaterra, e a descrição continuada de prados, bosques, desfiladeiros, praias, fazendas, charcos, e correlatos. Em determinado momento do terceiro capítulo, surge uma cerca elétrica e, atrás dela, um rebanho de porcos. O narrador pula a cerca e chega perto de um dos animais:
Corri a mão sobre seu dorso empoeirado, que estremeceu ao inusitado toque, acariciei-lhe o focinho e o rosto e afaguei-lhe a cova atrás da orelha, até que ele suspirou como alguém afligido por infinito sofrimento. Quando me reergui, tornou a fechar o olho com uma expressão de profundo afeto.
O episódio faz o narrador pensar na história de Jesus expulsando os demônios nos Evangelhos. Uma "história terrível", escreve ele, quando "o Senhor ordenou aos espíritos maus que entrassem no rebanho de porcos que ali se alimentava":
Os demônios imploraram a Jesus: "Manda-nos para os porcos, para que entremos neles". Ele lhes deu permissão, e os espíritos imundos saíram e entraram nos porcos. A manada de cerca de dois mil porcos atirou-se precipício abaixo, em direção ao mar, e nele se afogou (Marcos 5, 12-13).
As ovelhas no fundo do precipício |
A junção do projeto geral - peregrinação inglesa - com o detalhe da morte dos porcos me fez lembrar de Far from the Madding Crowd, o livro de Thomas Hardy de 1874, cuja ação inicia em 1870 (ano citado por Sebald quando menciona o projeto de iluminação pública usando cadáveres de arenque). O pastor Gabriel Oak acorda sobressaltado e vai conferir suas ovelhas, que não encontra no cercado. Ele começa a subir a colina que leva ao precipício e vê ao longe seu cão, "sombrio e impávido como Napoleão em Santa Helena", escreve Hardy, e continua:
A horrible conviction darted through Oak. With a sensation of bodily faintness he advanced: at one point the rails were broken through, and there he saw the footprints of his ewes. The dog came up, licked his hand, and made signs implying that he expected some great reward for signal services rendered. Oak looked over the precipice. The ewes lay dead and dying at its foot—a heap of two hundred mangled carcasses, representing in their condition just now at least two hundred more.
Existe até uma simetria na quantidade de animais - dois mil porcos, duzentas ovelhas. O que deu na cabeça do cachorro, que levou as ovelhas até a beira do precipício e as fez pular, uma a uma? Animais que enlouquecem; a insondável profundeza dos olhos de certos animais e filósofos, como Sebald aponta no início de Austerlitz:
A respeito da história de Jesus e os porcos, o narrador de Sebald também vê aí uma "parábola" acerca da necessidade de "nossa doentia razão humana" de "sempre investir contra uma outra espécie, por nós considerada inferior e digna de nada além da destruição". É digno de nota que também Hardy, ao concluir a história do cão e das ovelhas (ele é executado pelo pastor em seguida), mencionando sua capacidade de levar o trabalho até o fim, até as últimas consequências, aproxima o animal dos filósofos:
George's son [ou seja, o cão] had done his work so thoroughly that he was considered too good a workman to live, and was, in fact, taken and tragically shot at twelve o'clock that same day—another instance of the untoward fate which so often attends dogs and other philosophers who follow out a train of reasoning to its logical conclusion, and attempt perfectly consistent conduct in a world made up so largely of compromise.
E não é também uma espécie de antecipação de Adorno - o Adorno da Dialética do Esclarecimento - essa ideia do filósofo who follow out a train of reasoning to its logical conclusion, sendo essa "conclusão lógica" a própria destruição e mortandade, como tantas vezes escreve Sebald?
O cão filósofo |
(as imagens são da mais recente adaptação de Far from the Madding Crowd, de 2015, dirigida por Thomas Vinterberg)
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