sexta-feira, 5 de agosto de 2016

A lente de aumento

Sebald começa Os anéis de Saturno celebrando o olhar anticartesiano de Rembrandt, que escolhe representar a mão do bandido assassinado de forma desproporcional, mostrando, segundo a leitura de Sebald, o absurdo da empresa racionalista exemplificada pela Lição de anatomia do dr. Nicolaas Tulp. O detalhe revelador, sempre à mostra como a carta roubada de Poe, salta aos olhos e mostra a mão invertida, absurda. A mão do morto faz par com a mão do dissecador, do cientista, que mimetiza o movimento que o morto já não pode mais fazer.
Em Os emigrantes, no último capítulo, quando visita o pintor Frank Auerbach pela segunda vez, depois de vinte e cinco anos de distância, o narrador de Sebald reencontra pendurado no mesmo lugar outro quadro de Rembrandt, uma reprodução de Homem com uma lente de aumento (retrato feito por volta de 1660 de Pieter Haringh, leiloeiro e negociador de obras de arte, artefatos os mais diversos, relógios, joias, diamantes, que se tornam mais ou menos íntegros, mais ou menos valiosos através do uso desse instrumento, dessa prótese que é a lente de aumento).
O ofício do modelo de Rembrandt faz lembrar o joalheiro de Leskov, aquele que sabia reconhecer a pedra especial, a alexandrita. Mas não só por isso: existe algo de transcendental, quase metafísico, tanto na relação do joalheiro de Leskov com as pedras (e as profundezas que a produziram, sobretudo) quanto na relação do pintor Auerbach com a reprodução de Rembrandt, pendurada como um amuleto, no mesmo lugar, durante vinte e cinco anos (como se estivesse sempre a relembrar, do fundo de suas trevas tão anticartesianas, a importância de atentar para os detalhes, de ver de perto, de perseverar na minúcia). 

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