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Minha ideia era ler El tilo, de César Aira, no Google Books. Quando encontrei, fiquei feliz. Sabia, claro, que algumas partes não estariam disponíveis, mas sabia, também, que, como afirma o próprio Aira, sua narrativa é contínua e feita de lampejos heterogêneos, que ele tenta, na labuta diária, costurar. Encarei como uma tarefa de "leitor macho", como dizia Cortázar antes do feminismo. Ou seja, completar as lacunas, as lacunas forçosamente impostas pelo novo suporte, um suporte que estimula e censura ao mesmo tempo, um paradoxo que é guiado pela lógica do mercado. Só poderia ver o suficiente para depois ir comprar o livro.
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Os cortes do Google começaram na página 12, depois na 20, logo em seguida na 27 e o último na 34. O livro some na 42. Até aí muito de biográfico: um menino que cresce em Pringles na década de 50, um pai eletricista e uma árvore no meio do povoado, justamente el tilo, que é a árvore da tília. Não sei, só li até a página 42, como já disse, mas imagino que Aira faça referência ao chá de tília que Marcel toma na Recherche, esse livro tão exigente que Aira lê aos quinze anos e lhe faz descobrir que a vida simplesmente não tem clímax, que se trata de uma sucessão de acontecimentos sem desenlace. Curioso, porque as 42 páginas iniciais de El tilo são sobre a infância - enquanto Marcel utiliza chá e biscoitos para acessar a memória, César utiliza a matéria bruta, a árvore que gera o chá, como "desinibidor" da memória. A literatura de Aira é cheia desses "desinibidores", como um carrapato cego que se lança sobre o animal de sangue quente, quando fareja sua aproximação - a literatura de Aira salta de suporte em suporte atrás de sangue quente, temas, histórias. Aliás, El congreso de literatura é justamente sobre um cientista (Aira) que cria uma mosca que tem como missão capturar o código genético de Carlos Fuentes em um congresso de literatura, mas que acaba pousando em sua gravata.
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Há o sujeito que escreve sobre como falar dos livros que não lemos. Mas como falar dos livros que só lemos até a página 42? Minha leitura emula a própria construção da novelita de Aira, e em certa medida é a leitura mais fiel que se pode obter, diante das circunstâncias: os cortes na memória do protagonista são erráticos, as lacunas são desconfortáveis e a história parece não ir a lugar algum. E lendo El tilo, lembrei de outra árvore, essa das minhas leituras de adolescência, ou seja, Aira pode ter lido Proust, mas eu li Erico Verissimo. Em O tempo e o vento há uma árvore no centro da praça central de Santa Fé, ali onde aparece o negro enforcado, que voltará para assombrar Bolívar, e também onde aparece outro enforcado, lá no fim do romance, Arão Stein, o judeu comunista, que assombrará Floriano Cambará, que está escrevendo o livro. As 42 páginas de El tilo bastaram para iluminar retrospectivamente as 2.000 páginas de O tempo e o vento. "A modernidade entrava em mim como uma torrente selvagem e eu mesclava tudo", escreve Aira na página 36.
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Curioso isso do personagem que lemos estar escrevendo o livro que lemos, como acontece com Floriano Cambará, o que permite ao Erico Verissimo transformar o primeiro parágrafo também em último, quando Floriano decide finalmente sentar à máquina e começar seu livro. Aira, nas 42 páginas de El tilo às quais tive acesso, faz o mesmo. O narrador está escrevendo na máquina de um vizinho qualquer: "Se inclinó sobre mi hombro a mirar, vio mi coma, y observó otra cosa: - Ojo! Antes de la y griega no se pone coma, nunca. No era lo que yo había preguntado, aunque la advertencia era pertinente porque había puesto la coma antes de una "y".", página 39. Está ali, viram?: "...vio mi coma, y observó..." - justamente o 'y' depois de uma vírgula, como foi advertido lá na infância, e como continua fazendo, unindo as duas pontas da vida, talvez, como se El tilo já estivesse escrito, desde antes.
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A página 42 começa com "novelita de homenaje justamente sobre la coma." - trata-se do fim de uma das partes cortadas, o que me deixou à deriva, imaginando uma novelita, escrita sobre Aira, que trata justamente da vírgula. Desconheço, até hoje.
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