"Encontramos essa reconciliação com a morte, esse simples e piedoso recolhimento deste mundo, também em Cervantes, embora ele esteja mais distante da imagem do mundo engendrada pela concepção teológica da arte. O final de Dom Quixote é característico. Durante sua breve doença terminal, o engenhoso fidalgo cai num sono profundo, do qual desperta mudado. Readquire não só a razão, como também seu verdadeiro nome - Alonso Quijano, el bueno. A dissolução física é, ao mesmo tempo, uma restituição espiritual em que o moribundo, 'exclamando em alta voz', reconhece uma prova da misericórdia divina. Dom Quixote entrega sua alma como um homem curado. (...) Aqui também, como nos dramas de Lope e Calderón, as coisas terrenas se conciliam com o supraterreno. Essa grande arte espanhola não repudia o natural, mas também nada do sobrenatural" (Ernst Robert Curtius, Literatura europeia e Idade Média latina, trad. Teodoro Cabral, Edusp, 2013, p. 721-722)
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"Em Kafka, todos os personagens são limítrofes, habitantes de dois mundos, caminhantes da fronteira entre o sonho e a realidade, a vida e a morte, o ser e o não-ser, ou solitários, viajantes, pessoas sem pátria, sem paz, sem identidade definida. São eles que tornam a obra do judeu de Praga tão inconfundível. Mas é curioso: todos esses personagens, ainda que pertençam a mundos intermediários, não têm um papel social que os predestine a quedas trágicas, não têm origens espetaculares nem se destacam por uma excepcional grandeza. Não é importante quem sejam mas o que acontece com eles, o que lhes sucede e o que se possa demonstrar por meio deles. Em outras palavras: quem vier a confrontar-se com esses personagens será compelido a rever seus valores, será, ele próprio, atraído a espaços intermediários onde a normalidade parecerá suprimida, ver-se-á defrontado com uma visão totalmente diversa da realidade" (Karl-Josef Kuschel, Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários, trad. Paulo Soethe, Loyola, 1999, p. 39)
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