domingo, 9 de janeiro de 2022

O signo na montanha


1) The Power of the Dog, de Jane Campion, mostra, no personagem Phil, a junção tensa de dois universos, dois mundos, dois campos antagônicos de experiência: o campo e a cidade, o manual e o mental, o grosseiro e o refinado, opostos combinados em uma mesma subjetividade, o castrador de novilhos formado em Yale, em "letras clássicas". Como costuma acontecer, é em uma piada (chistes e sua relação com o inconsciente...) que os dois campos emergem entrelaçados: no jantar, o governador pergunta: "ele fala com o gado em grego ou latim?" (o que faz pensar na reflexão de Roberto Calasso, que já disse que "a métrica é o gado dos deuses"). 

2) O que está continuamente em jogo é a capacidade de reconhecer no mundo os signos que não estão imediatamente à vista - Phil diz a um dos peões: "Se você não vê nada, não há nada para ver". O enigma é reiterado ao longo do filme, um enigma revelado a Phil por Bronco Henry, o morto que nunca aparece, a ausência presente, espécie de sacerdote que inicia Phil nos arcanos de uma visibilidade incerta (nesse ponto também os extremos se tocam: quando o governador fala do passado de Phil em Yale, salienta sua participação em uma irmandade exclusiva (Phi Beta Kappa is the oldest academic honor society in the country)). Na linha do Facundo de Sarmiento, Phil é treinado como um rastreador, um decifrador daquilo que resiste à leitura (como Édipo e José no Egito, Freud e Thomas Mann).

3) A cena de Phil com os peões - que mostra a cegueira dos outros, a incapacidade de reconhecer o signo na montanha - é contrastada com a cena de Phil com Peter, que reconhece de imediato o desenho formado pelas sombras na montanha (formando essa tríade de sustentação subterrânea da trama, Bronco Henry - Phil - Peter, ligados pela capacidade de ver o invisível, decorrente de uma sensibilidade "homoafetiva" (salientada em Phil por sua ligação com os "gregos")). É digno de nota que, como bom filólogo, Phil se refira ao professor-sacerdote Bronco Henry a partir de um termo estrangeiro, Il lupo, para delimitar com rigor suas raízes míticas (é significativo, por outro lado, que a "loba", lupa, que alimenta os dois irmãos na fábula, seja transformada em "lobo", lupo, nessa reconstrução de Phil, que visa recalcar precisamente essa dimensão "feminina" de seu Bildungsroman).

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