quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Nova refutação do tempo



1)
Em O zelo de deus: sobre a luta dos três monoteísmos, lançado em 2007, Peter Sloterdijk retoma rapidamente um tópico extensamente discutido por Auerbach em Mimesis ou mesmo por Harold Bloom em parte de sua obra: a transformação dos textos do passado a partir de um novo olhar político e teológico promovido pelos "teólogos de Niceia", que criaram o Antigo Testamento como decorrência do Novo (configurando uma preparação de terreno deliberadamente anacrônica). "O que os teólogos cristão denominaram Deus Pai foi uma invenção tardia com propósitos políticos-trinitários", escreve Sloterdijk. "Naquela época, era preciso introduzir um Pai bondoso que combinasse mais ou menos com o filho admirável. Naturalmente a nova descrição cristã de Deus pouco tinha a ver com o Javé dos escritos judaicos" (p. 35).

2) Alan Pauls, em El factor Borges, enfatiza a "síndrome borgeana" da "segunda mão": Borges como artista da cópia e da falsificação, mas também como aquele que "emancipa" as traduções dentro de uma "ética da subordinação" ("original é sempre o outro"). Com "El acercamiento a Almotásim", texto publicado em História da eternidade, Borges glosa e se alimenta de um "livro alheio", um livro que na verdade é uma postulação da glosa: o "livro-mãe" (o livro que está sendo "resenhado" na nota de Borges) é "filho da glosa que o comenta". A obra original é originada pela resenha que a comenta, transformando aquilo que deveria existir antes em um efeito retrospectivo (como ler o Quixote primeiro em inglês; como tratar as traduções das 1001 noites como vários originais possíveis).

3) Essa dinâmica está presente no conceito de Freud de Nachträglichkeit (aparece, por exemplo, no caso do Homem dos Lobos) - retroaction, après-coup, afterwardsness -, “processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos”, nas palavras de Hal Foster (O retorno do real, p. 46). É digno de nota que a ideia de uma configuração retrospectiva dos eventos passados está presente também na análise que Freud faz do "mito Moisés" em Moisés e o monoteísmo, ligando-se com isso à argumentação de Sloterdijk (e fechando um circuito de anacronismo deliberado também aqui, agora, como se o texto de Sloterdijk interferisse sobre o de Freud, como Menard o faz com Cervantes e assim por diante): o confuso encadeamento dos fatos na história coletiva é corrigido a posteriori, com duas figuras distintas sendo unidas tanto em "Moisés" quanto em "Javé".

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