sábado, 1 de janeiro de 2022

Pé-no-chão




Em seu ensaio dedicado à aproximação entre Joyce e Vico - Dante... Bruno. Vico.. Joyce, publicado originalmente em 1929 no livro Our Exagmination Round His Factification for Incamination of Work in Progress -, Samuel Beckett começa com uma definição de Vico:

Giambattista Vico was a practical roundheaded Neapolitan.

A tradução de Lya Luft no volume coletivo riverrun, Ensaios sobre James Joyce (editado pela Imago em 1992, com organização de Arthur Nestrovski) diz o seguinte (p. 324):

Giambattista Vico era um napolitano puritano.

Outra tradução, mais recente, de Lucas Peleias Gahiosk, foi publicada no periódico Revista de Teoria da História (UFG), apresentando a frase de Beckett da seguinte forma:

Giambattista Vico foi um Napolitano prático e pé-no-chão.

Além disso, o tradutor acrescenta uma nota de rodapé para esclarecer a escolha do termo "pé-no-chão":

"Beckett emprega o termo roundheaded, que também é utilizado por Joyce, de forma positiva, para enfatizar a orientação de Vico em direção à empiria. Ver: VERENE, Donald Phillip. On Vico, Joyce and Beckett. In.: Beckett/Philosophy. Org. Matthew Feldman e Karim Mamdani. Stuttgart, Ibidem-Verlag, 2015. p. 69."

*

1) Não se trata apenas do problema de eliminar um termo do original na tradução, mas de eliminar um termo tão importante para a correta avaliação da triangulação Vico-Joyce-Beckett (ainda mais se tratando de um conjunto de obras nas quais a valorização dos "termos" é enorme - basta pensar no uso que faz Vico da filologia). A evocação da "cabeça" não é apenas a evocação da "razão" (o cogito, especialmente se pensarmos na rivalidade que Vico desde o início estabelece contra o projeto cartesiano), mas a colocação em primeiro plano da materialidade do corpo, seu peso, sua influência: em sua Autobiografia, Vico fala de como caiu e bateu a cabeça quando criança; quando evoca Vico, James Joyce faz questão de reiterar esse fato, essa cena inaugural, da cabeça rachada como senha para ver o mundo com outros olhos. 

2) É bastante conhecida a proximidade crítica que Beckett estabelece com Descartes em sua obra: tudo começou com Whoroscope, um longo poema escrito em inglês, mas publicado em Paris por The Hours Press (um pequena casa editorial que contava com um concurso literário, que naquele ano foi vencido por Beckett). O personagem principal é Descartes (Beckett avisa nas notas), que medita sobre o tempo (tema do concurso) em algo que lembra um fluxo de consciência mesclado a comentários culinários, geográficos, teológicos e retóricos.

3) A cabeça, o crânio: Eugene Webb, em livro de 1974 (The Plays of Samuel Beckett), fala do cenário de Fim de partida como o interior do crânio "de um indivíduo que fechou seus olhos para o mundo". Paul Valéry relata em seus Cadernos que teve em suas mãos o crânio de Descartes, em uma visita ao Museu de História Natural (Reino Virtanen, L'imagerie scientifique de Paul Valéry, J. Vrin, 1975, p. 124). Nada mais adequado ao criador do Monsieur Testepara Valéry, o cogito de Descartes é uma ficção, ou ainda, um procedimento ficcional que não pretende mudar o pensamento mas, apenas, dar coerência à história que engendra - assim como Teste, uma história que deseja perder-se em seu próprio infinito. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário