sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Um único epíteto


Na quarta seção de "O imortal", o conto que Borges publica pela primeira vez em fevereiro de 1947, na revista Anales de Buenos Aires, e que depois, em 1949, reaparecerá no seu livro O aleph, o autor escreve que ser imortal é insignificante: todas as criaturas o são, pois ignoram a morte (exceto o homem, que tem a morte como horizonte permanente). Dada a abstração da imortalidade, o narrador de Borges chega à conclusão de que, num prazo infinito, a todo homem acontecem todas as coisas; as virtudes anulam as infâmias, e vice-versa, seja do passado, seja do futuro. E nesse ponto, costurada à reflexão abstrata e metafísica, surge um comentário literário, uma brevíssima interpretação, um fugaz juízo de valor, muito ao estilo de Borges: esse jogo de equivalências tende ao equilíbrio, escreve Borges, e talvez o rústico Poema do Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto das Églogas ou por uma sentença de Heráclito.

Essa aparição relâmpago de Virgílio é reveladora, especialmente em um conto que fala tanto de Homero, que depende tanto da fortuna póstuma e milenar das palavras e da figura mítica de Homero. Virgílio aparece em vários momentos da obra de Borges, mas nesse ponto específico de "O imortal" ele não é nominalmente mencionado, algo que certamente não contribui para a contagem estatística da presença de Virgílio na obra de Borges - mas a ênfase é decisiva: "um único epíteto das Églogas", é o que basta (é possível também insistir que Borges trabalha, em vários momentos, a partir de uma triangulação canônica que, para ele, é inquestionável: Homero, Virgílio, Dante).

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Der Ister


1) Com os textos sobre Hölderlin, Heidegger muda de elemento - passa da terra (do solo, preponderante em Ser e tempo - "ter uma casa atrás de si", como escreve Sloterdijk) para a água e, com isso, propõe uma nova fenomenologia do habitar. Durante a guerra, em 1942, Heidegger oferece na Universidade de Freiburg um curso sobre Hölderlin, sobre o poema dedicado ao rio Danúbio, Der Ister. O canto dos rios se funde aos cantos da poesia, da mesma forma que a ressonância do espaço externo estabelece contato com a paisagem imaginativa dos sujeitos (na Eneida de Virgílio, por exemplo, o Tibre surge como um deus). 

2) A corrente do rio, sua dimensão de movimento constante, evoca a instabilidade do Ser - o movimento do rio é tanto a "localidade do que é errático" quanto a "erraticidade do que é local". O Danúbio evoca um pertencimento específico, que não é aquele dos oceanos, ou mesmo aquele do Mediterrâneo; ao mesmo tempo, é seu curso que garante, para Heidegger, uma ligação entre a Alemanha e a Grécia, uma ligação que pode ser fundada no espaço, a partir de um conjunto de coordenadas geográficas específicas (um rio "que parece correr ao contrário"). A Antígona de Sófocles permite a Heidegger articular a leitura inicial de Hölderlin (tradutor do grego) com seu encaminhamento da reflexão em direção à política e ao uso do território (pois Antígona desafia a ordem do soberano com relação ao uso da terra, do espaço).

3) É outro, contudo, o Danúbio que encontra Claudio Magris algumas décadas depois (embora seja curioso o fato da publicação do curso de Heidegger sobre Hölderlin ser póstuma e ter sido realizada em 1984 - apenas dois anos antes do lançamento de Danúbio, a obra-prima de Magris): Magris relata sua passagem pela casa de Elias Canetti, por exemplo, mas essa casa nada tem a ver com o solo, tampouco está ancorada na paisagem imaginativa dos sujeitos - é apenas um ponto de passagem, uma posição contingente dentro de uma cartografia provisória.  

sábado, 16 de novembro de 2024

Adestradores


Ainda em De genio Socratis, bem depois da passagem na qual se fala do daimon de Sócrates como um espirro, outro personagem relembra o que um oráculo teria dito ao pai de Sócrates quando este era ainda criança (20, 589, E): devia deixá-lo fazer o que quisesse, sem limitar ou guiar seus impulsos, garantindo sua plena liberdade, pois o menino já tinha dentro de si um guia melhor que qualquer mestre ou pedagogo.

Por fim, outro personagem, ampliando a questão (24, 594, B), levanta a hipótese de que os deuses marcam os melhores de nós, como um adestrador escolhe um cavalo dentro de um grupo de cavalos; os escolhidos recebem mensagens por símbolos, incompreensíveis para o restante do rebanho; assim como a maioria dos cães não entende o chamado do treinador, mas o cão escolhido sabe obedecer a um determinado assovio. "Tenho a impressão de que também Homero conhecia essa diferença", diz o personagem de Plutarco, citando o verso: "Heleno, querido filho de Príamo, entendeu dentro de si a decisão que agradava aos deuses em seus conselhos" (Ilíada, VII, 44-45). 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Sócrates e o espirro


Em sua narrativa De genio Socratis (tradução latina do grego Perí tou Sōkrátous daimoníou), Plutarco não apenas retoma a figura de Sócrates, mas o faz a partir do modelo oferecido pelo Fédon platônico: uma reflexão especulativa acerca do destino das almas após a morte. Na narrativa de Plutarco, Sócrates aparece eventualmente como tema de conversação de um grupo de conjurados que prepara uma insurreição contra os tiranos que tomaram o poder em Tebas (o que faz pensar em certas histórias de Jorge Luis Borges ou de Leonardo Sciascia). 

Em certa passagem (11, 581, B), um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon, a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada (o mesmo personagem chega à conclusão, no andamento de sua fala, que a ideia toda é ridícula e não combina com aquilo que sabemos sobre Sócrates).

terça-feira, 12 de novembro de 2024

De que texto se trata?


1) Vernant e Vidal-Naquet, no segundo volume de Mito e tragédia na Grécia antiga (p. 222-223), falam do Édipo rei de Sófocles, representado em Atenas por volta de 420 a.C. De que texto se trata?, eles se perguntam. "Ninguém gravou a representação de Atenas": a história da tradição se iniciou assim que os copistas começaram a copiar os manuscritos. O texto, portanto, não é de Sófocles, mas de um copista, de um editor bizantino, Manuel Moscopoulos (comentador e gramático que viveu no final do século XIII e início do século XIV).

2) O célebre manuscrito Laurentianus (uma cópia em minúsculas de um texto escrito em unciais, como precisam os autores) permite quando muito retornar ao codex do século V d. C., de que ele é uma cópia. Mais longe, é preciso postular um volumen da alta época imperial, que não é o texto de Sófocles, mas a interpretação de um filólogo da época de Adriano (Publius Aelius Hadrianus, imperador romano de 117 a 138). 

3) O texto de Sófocles não precisa esperar o período romano para se tornar clássico ou escolar: já com Licurgo os três grandes trágicos já estão classificados como tais (Ésquilo, Eurípides, Sófocles, como registra Aristófanes nas Rãs, de 406). Licurgo já está quase um século distante da maioria das obras no período trágico - e foi ele quem instaurou a lei das "versões oficiais", ou seja, a lei que determinava que os textos das obras dos três grandes trágicos deveriam ser custodiados nos Arquivos da cidade, evitando, assim, modificações espúrias. 

domingo, 10 de novembro de 2024

O final é o começo



1) No último capítulo de Mimesis, dedicado a uma análise da "meia marrom" em Virginia Woolf (uma passagem do romance Ao farol), Auerbach fala não apenas de Woolf, Joyce e Proust, mas da cena modernista de uma forma geral - chega a comentar, por exemplo, que existem certos romancistas que, apesar de já esteticamente "prontos" (ou "maduros"), utilizam ad hoc algumas das técnicas vanguardistas (o principal exemplo de Auerbach é Thomas Mann). Trata-se, contudo, de um capítulo de despedida e, por isso, complexo e heterogêneo - Auerbach chega a fazer um paralelo com Homero, retomando a cena do reconhecimento de Ulisses por conta de sua cicatriz (Auerbach, portanto, liga o ponto final ao ponto inicial de seu projeto).

2) O paralelo com Ulisses pode ser produtivo, na medida em que Auerbach, exilado e irrequieto (além de cosmopolita e poliglota), tomava como próprio o destino do errante. Ulisses, ao voltar para casa, antes de voltar ao leito que ele próprio construiu (a partir da árvore que nasce no lugar onde está o quarto), conta a Penélope como aprendeu, pelas palavras de Tirésias no inferno, que ele precisa - mesmo depois do retorno - seguir viagem. Ao retomar o início de Mimesis no final de Mimesis, Auerbach mostra, de forma enviesada, que o trabalho deve continuar, que o "final" é apenas um "começo" deslocado (Ulisses precisa seguir viagem já no dia seguinte, depois da noite de amor com a esposa, até encontrar alguém que não reconheça o remo - que deve, necessariamente, levar consigo - como um remo, e sim como uma "pá para grãos"). 

3) Tanto é verdade que o fim de Mimesis marca um recomeço que Auerbach define o próprio trabalho como uma filologia feita a partir dos moldes vanguardistas (e justamente porque Auerbach não sabe a direção do romance contemporâneo, também não sabe a direção exata de seu próprio trabalho). Em outras palavras, ele afirma que seu trabalho não é totalizante ou histórico, e sim a investigação de certos detalhes, certas cenas e certos problemas - algo que, de resto, é exemplificado e evidenciado pelo próprio drama da "meia marrom" de Virginia Woolf, na qual Auerbach vê o próprio destino (analisar toda uma existência condensada em uma cena, um detalhe: a cicatriz, a meia marrom, o carneiro de Dindenault na análise de Rabelais, etc). 

domingo, 3 de novembro de 2024

1919, 1929



1) No sexto parágrafo de seu ensaio sobre o surrealismo, Walter Benjamin cita Erich Auerbach, ou melhor, cita o livro de Auerbach sobre Dante (lançado em 1929, o mesmo ano do ensaio de Benjamin), especificamente a parte na qual Auerbach fala dos poetas do "estilo novo" como pertencentes a uma "sociedade secreta", dedicados a "aventuras do amor" e buscando "dádivas" que mais se assemelham a iluminações. "Iluminações", evidentemente, é a palavra-chave, já que Benjamin busca aproximar Dante e sua "sociedade secreta" da cena surrealista, que ele tenta interpretar a partir de um horizonte semelhante (a partir de Rimbaud).


2) No parágrafo seguinte, Benjamin aprofunda sua análise dos temas caros aos surrealistas - em suma, uma valorização daquilo que não é valorizado normalmente pela sociedade (roupas com mais de cinco anos, as primeiras fábricas, as primeiras construções de ferro e assim por diante), o que mantém, no pano de fundo, a aproximação com Dante e seu círculo (que revitalizam poeticamente relações cotidianas que passam inadvertidas pelas pessoas "normais"). Em seguida, surge uma segunda referência muito recente dada por Benjamin: um ensaio de Pierre Naville, "A revolução e os intelectuais", publicado em francês em 1926.

3) Naville e Auerbach surgem no ensaio de Benjamin mostrando sua faceta de intelectual atualizado e de pensador versátil e predisposto aos saltos - de Dante ao surrealismo, dos Demônios de Dostoiévski às passagens de Paris, de uma carta de Isidore Ducasse ao "aperfeiçoamento pacífico" da Força Aérea alemã. Benjamin escreve no calor da hora, marcando 1919 como uma data definidora - ele fala do início do surrealismo, mas é também o ano do Tratado de Versalhes e dos assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (algo decisivo no debate sobre "pessimismo" e "otimismo" que Benjamin, muito rapidamente, apresenta no ensaio sobre o surrealismo, mas que vai aparecer também em textos como "Teorias do fascismo alemão", "Melancolia de esquerda", "Experiência e pobreza", etc).