1) Por conta de uma equação alegórica complexa que leva medidas variáveis de Jesus, Sócrates e Wittgenstein, David Markson apresenta a narradora de Wittgenstein's Mistress como alguém propensa a gestos - gestos que criam uma sorte de corrente associativa através do tempo e do espaço. Gestos como o de desenhar seu autorretrato em espelhos, riscar a areia da praia com um bastão, ou simplesmente apontar com o dedo (o céu, o horizonte).
2) Uma questão fundamental para Markson é aquela da filiação, da relação mestre x discípulo. Sua narradora se identifica como pintora e frequentemente faz comentários sobre mestres e discípulos no contexto da história da arte, especialmente no Renascimento italiano:
Na verdade, espero não ter perguntado a ele [William Gaddis] se ele sabia que Taddeo Gaddi foi pupilo de Giotto.Talvez eu não tenha mencionado que Rafael foi pupilo de Perugino. Ou que Perugino por sua vez foi pupilo daquele Piero que não se escondia sob as mesas, o que leva as conexões ainda mais longe.
Tudo isso sendo o resgate de algo que havia escrito algumas páginas antes, sobre Sócrates:
De novo, nem sempre aquilo que escrevo sobre pupilos se aplica a todos os casos.Somente entre aqueles que já mencionei, o pupilo de Sócrates, Platão, e o pupilo de Platão, Aristóteles, e o pupilo de Aristóteles, Alexandre o Grande, são três que certamente ficaram famosos.
3) A ficção de Markson trata, em grande medida, da habilidade necessária para a leitura dos gestos, esses gestos que remetem a filiações, a pertencimentos. O que está em jogo é sempre uma reflexão sobre o que vem antes ou depois e como isso se relaciona (criativamente, criticamente) com aquilo que está sendo enunciado diretamente - aquilo que Helena estava fazendo antes ou depois do rapto, da filha que deixou para trás; aquilo que Wittgenstein disse/fez antes e depois do encontro com Russell (vide a epígrafe); os vários mestres e discípulos mencionados e suas estratégias mútuas de aproximação/distanciamento. Talvez a subtrama mais interessante da narradora de WM no que diz respeito ao jogo das filiações seja aquela que envolve dois tradutores - o grego que traduz Shakespeare e o anglófono que traduz Eurípides. Lendo Eurípides na tradução para o inglês, a narradora identifica Shakespeare (levantando a hipótese do tradutor ter, anacronicamente, repassado o estilo de Eurípides através de um prisma shakespeareano). Quando encontra um exemplar em grego de Shakespeare, a narradora se faz a mesma pergunta: será esse tradutor grego de Shakespeare não fez o mesmo, repassando o Bardo através de um prisma euripideano?. Como escreve Borges no verbete "Epidauro" de seu Atlas:
Minha ignorância do grego é tão perfeita quanto a de Shakespeare.
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