quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Markson, Rembrandt

Dois traços distintivos de Wittgenstein's Mistress, o romance de David Markson: a narradora mulher e seus comentários que fazem referência a tal condição (o fato de ninguém menstruar na Ilíada; o papa que queimou quase toda poesia conhecida de Safo; a filha de Helena de Troia deixada para trás, Hermione, etc), e seu cenário pós-apocalíptico. O mundo acabou e, ainda assim, uma mulher senta para escrever sua história. Não a história de sua sobrevivência ou a história da dissolução da humanidade tal como a conhecemos, mas sim a história da sua memória, uma reflexão sobre como o mundo só é possível a partir da linguagem. A narradora escreve:
O que aconteceu depois que comecei a escrever sobre Aquiles foi que no meio da frase comecei a pensar num gato. 

O gato em que comecei a pensar era o gato que estava do lado de fora da janela quebrada do quarto ao lado deste, de onde vem um som de arranhar quando bate o vento.

O que equivale a dizer que também não estava pensando num gato, não havendo nenhum gato exceto aquele que o som de arranhar me fez lembrar.

Assim como não eram moedas no chão do ateliê de Rembrandt, exceto aquelas que a configuração do pigmento fazia Rembrandt pensar em moedas. 
A última frase apresenta um dos procedimentos recorrentes de Markson, que é o de retomar uma mesma anedota ao longo de toda a narrativa por diversos ângulos. A narradora de Markson diz que os aprendizes de Rembrandt pintavam moedas de ouro no chão do ateliê, enganando o mestre, que se abaixava para pegá-las. Memória e linguagem são, portanto, argumenta Markson, como essas moedas falsas pintadas no chão. Ainda que prometendo algo que não se cumpre, que se revela falso, a experiência da busca (de agachar para pegar as moedas; de vasculhar a memória e traduzi-la em linguagem) revela uma outra espécie de recompensa, um desdobramento lúdico do próprio desejo, que agora pode rir da futilidade de sua própria urgência (o que talvez explique porque um livro que se passa depois do fim do mundo seja um livro não sobre o fim do mundo, mas sobre a linguagem e a memória como moedas falsas).

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