sábado, 30 de maio de 2015

Museu do chisme, 3

1) Uma das epígrafes do livro de Cozarinsky vem de Borges - um texto sobre o Martín Fierro no qual Borges fala de uma "menina argentina" que não gostava de fofocas, preferia o estudo de Proust, "e alguém lhe disse", escreve Borges, "que os romances de Proust eram chismes, ou seja, notícias particulares humanas". Tanto Proust quanto Flaubert servem a Cozarinsky como acesso a essa dimensão político-cultural que, de resto, servia também a Marx: a burguesia, o burguês e seu vocabulário, sua trama de histórias que consolidam a comunidade.
2) A circulação chismática burguesa carrega eventos típicos de Proust e Flaubert (evidentemente não só deles) - adultérios, compras e vendas, recepções, escândalos, ciúmes, achaques sobre reputações, violações variadas dos códigos, etc. Encontramos esse ambiente (o ambiente daqueles que devem agir apropriadamente e, nisso, montar um sistema de vigilância permanente) em filmes como, por exemplo, Gigi, de Vincente Minnelli (1958), Bonjour Tristesse, de Otto Preminger (1958), ou All That Heaven Allows, de Douglas Sirk (1955); compartilham essa noção delineada exaustivamente por Cozarinsky: só há relato porque há preocupação com o olhar alheio, imagina-se a imaginação alheia, "numa circulação não menos abstrata que a do dinheiro", escreve Cozarinsky.
3) A circulação abstrata do chisme, a circulação abstrata do dinheiro - duas circulações distintas sobrepostas no terreno comum da comunidade burguesa (responsável, afinal de contas, segundo Marx, pela fase inicial da Revolução). Comunidade que, não diferente de outras, luta para se manter e florescer - e Cozarinsky defende que o chisme é precisamente um dos procedimentos dessa luta (a prova de que funciona e funcionou é que seguimos lendo Flaubert e Proust nessa chave). Um dos relatos compilados por ele dá a dimensão dessa dialética entre mudança e manutenção: durante a II Guerra, em Paris, a residência do Barão de Rothschild foi ocupada pelo comandante da força aérea nazista. Terminada a guerra, o proprietário retorna de seu exílio em Londres, surpreso de encontrar tudo no lugar. Pergunta ao seu mordomo, que permaneceu na casa, como era possível. "Eles se comportaram muito corretamente", responde o mordomo, e queixa-se de apenas uma coisa: "Davam muitas festas e precisava permanecer de prontidão até muito tarde". O Barão então pergunta: "E quem comparecia às festas?". A resposta veio imediata, sem ênfase: "Os seus convidados de sempre, senhor".  

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