terça-feira, 3 de setembro de 2013

O horror e o artifício

1) Baudelaire, em O pintor da vida moderna, de 1863, escreve que se analisarmos "tudo o que é natural", "todas as ações e desejos do puro homem natural", "nada encontraremos senão horror". E continua: "tudo quanto é belo e nobre é resultado da razão e do cálculo. O crime, cujo gosto o animal humano hauriu no ventre da mãe, é originalmente natural. A virtude, ao contrário, é artificial, sobrenatural, já que foram necessários, em todas as épocas, e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la à humanidade animalizada, e que o homem, por si só, teria sido incapaz de descobri-la" (Poesia e prosa, Trad. Ivo Barroso, Nova Aguilar, 2002, p. 874-875).
2) Típica construção de Baudelaire, cheia de contradições minuciosamente elaboradas, que funcionam poeticamente mesmo na prosa, contradições que exploram os níveis heterogêneos que se confrontam no interior de uma mesma ideia. Que tipo de artifício que gera o belo pode ser criado por um indivíduo que nasce no crime e no horror? Um belo que só pode nascer fictício, mascarado, paródico. A linguagem em Baudelaire é um rebuscado exercício de troça metafísica: que deuses e profetas são esses que podem ensinar o que quer que seja à "humanidade animalizada", essa mesma humanidade que os criou? Daí a valorização do satanismo e da demonologia por Baudelaire, signos de uma realização poética que toma o "horror" da condição humana como ponto de partida (assim como Oscar Wilde, Baudelaire era um admirador de Charles Maturin).
3) Um ano depois, em 1864, Dostoiévski publica Memórias do subsolo - obra-prima da natureza humana como horror: Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. É também por conta desse tipo de filiação subterrânea que Baudelaire encontrará os textos de Poe - que Baudelaire afirma ter reconhecido, eram pensamentos seus que ainda não haviam tomado corpo. Quando Cortázar escreveu que Poe e Baudelaire eram a mesma pessoa, talvez tivesse em mente não apenas a semelhança física, mas essa típica figura do horror que é o duplo, ou ainda, o abrupto estranhamento de si diante do espelho.   

3 comentários:

  1. Taí, dois temas cristãos. O primeiro, o satanismo de Beaudelaire que se apropria de um certo agostianinismo político muito em voga na França desde o século XVII que tinha como motor um anti-papismo violento. Mas isto que você aponta como contradições são, de fato, algumas das aporias da graça. Digo, da Graça de uma natureza humana caída que em Beaudelaire já se deita sossegada num mundo cuja salvação é meramente escapar do animalesco. Dar um beijo de língua no Super-Ego e, mesmo, o golpe da barriga.

    O segundo tema é um que caiu muito bem na antropologia francesa, o da noção de pessoa como algo descolado do indivíduo empírico e que pode ser mais ou menos definida por via de uma certa performance moral cujo tema maior segue sendo o da Santíssima Trindade, ou o que discrimina as Três Pessoas - o Pai, o Filho e o Espírito Santo - encarnados no mesmo indivíduo histórico. Estranhar-se diante do espelho, ao invés de se sentir agraciado pode ser, mais uma vez, a inversão da Graça como uma forma de aprofundamento da mácula ou de, no limite, segurar as rédeas tentando se garantir como meramente humano o quê já foi considerado muito pouco. Agora anda parecendo impossível.

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  2. Aliás:

    http://www.amazon.fr/chair-diable-litt%C3%A9rature-si%C3%A8cle-romantisme/dp/2070754537/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1378407643&sr=1-1&keywords=Mario+Praz

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    1. Esse livro do Praz é estupendo - muito Schwob, muito decadentismo.

      *

      E sobre Baudelaire e os temas cristãos, é fato recorrente e matéria de poesia e reflexão crítica, realmente. Sobretudo na questão da Graça, ele tem sim uma reflexão profunda, que vai pela via da inversão, sim, e também pela via da ressignificação - a Graça é profanada e agora está acessível, tem um trecho em que Baudelaire fala do dançarino que "quebrou mil vezes seus ossos em segredo, antes de surgir em público". Aquilo que surge ao olhar da audiência, a Graça, a aparição que assombra, é também artifício, construção, manejo, procedimento, rotina (e essa imagem dos ossos quebrados mil vezes, que imagem, é o artista imortal, divinizado em sua materialidade frágil).

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