segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Sonho e ruína

Karl Briullov, O último dia de Pompeia, 1830-1833
1) Em março de 1971, George Steiner dá uma conferência na Universidade de Kent, na Inglaterra, que tem por objetivo indicar sugestões para uma redefinição da cultura da época. Steiner argumenta que a cultura do século XX, especialmente após a II Guerra, trava um intenso diálogo com o romantismo do século anterior. Esse contato, entretanto, privilegia uma camada subterrânea do movimento romântico: antes a exploração social do que a alta civilidade; antes a hipocrisia do que a liberdade de pensamento; antes a ameaça do Estado do que a segurança. A cultura do século XX, portanto, quando se volta para seu passado recente, procura a violência que lhe constituiu – principalmente aquela que está contida nos objetos artísticos da época. Nas palavras de Steiner:
É precisamente a partir da década de 1830 que se pode observar a emergência de um “contra-sonho” - a visão da cidade arrasada, a fantasia da invasão dos citas e dos vândalos, dos corcéis mongóis a matar a sede nas fontes dos jardins das Tulherias. Desenvolve-se uma estranha escola de pintura: quadros de Londres, Paris ou Berlim vistas como ruínas colossais, edifícios famosos queimados, saqueados ou localizados em uma desolação misteriosa entre restos esturricados e águas estagnadas. A fantasia romântica antecipa a promessa vingativa de Brecht, de que nada restará das grandes cidades exceto o vento que sopra através delas. Exatamente cem anos depois, essas colagens apocalípticas e esses desenhos imaginários do fim de Pompéia se transformariam em nossas fotografias de Varsóvia e Dresden. Não é necessário a psicanálise para sugerir o quanto havia de realização de desejos nessas sugestões do século XIX.
George Steiner. No castelo do Barba Azul: algumas notas para a redefinição da cultura. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 29-30.
2) A ideia da arte que sonha a história a partir de uma leitura retrospectiva do tempo. Mais do que uma antecipação de Brecht, realizada pela inventividade romântica, como assinala Steiner, vale notar a intervenção que é possível realizar, a partir de Brecht e de sua promessa vingativa, sobre a matéria informe da história (feita de tempos sobrepostos e cruzados). Os quadros românticos das capitais destruídas só surgiram em toda sua potência de significação depois das imagens de Dresden e Varsóvia. A partir da I Guerra Mundial, o “contra-sonho” da experiência do século XIX se torna a realidade imediata - está na "ordem do dia".
3) Será o tempo de Walter Benjamin, em consonância com seu amigo Brecht, cristalizar a imagem do processo histórico na nona tese: um anjo com o rosto voltado para trás, as asas estufadas pelo vento, contemplando as ruínas que o progresso deixa atrás de si – imagens que traduzem o tempo a partir de confrontamentos desconfortáveis, como a visão dos cavalos mongóis matando a sede nas fontes clássicas francesas. A literatura apresenta alguns dos artífices da articulação do contra-sonho romântico com o tempo presente: no período entre-guerras, Joseph Roth, Isaac Babel ou Bataille; no pós-II Guerra, Gert Ledig, Sebald ou Andrzej Kusniewicz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário