terça-feira, 30 de setembro de 2025
Montaigne em movimento
sábado, 27 de setembro de 2025
Montaigne: saber viver
sexta-feira, 26 de setembro de 2025
Ainda o espirro
2) No mesmo livro, agora na Seção 12, também em uma nota de rodapé, Hume comenta especificamente a conduta de Xenofonte (grande capitão e filósofo, discípulo de Sócrates), prova "imediata e incontestável" da credulidade geral dos homens; aconselhado por Sócrates, Xenofonte consultou o oráculo de Delfos antes de se engajar, como mercenário, na expedição de Ciro (relatada por Xenofonte na "Anábase", que descreve a campanha militar de Ciro, o Jovem, contra seu irmão Artaxerxes II, rei da Pérsia, em 401 a.C. Xenofonte participou como mercenário nesta expedição, que envolveu um exército de dez mil gregos, e narrou a jornada de retorno após a morte de Ciro na Batalha de Cunaxa).
3) Já durante a expedição, Xenofonte teve um sonho na noite seguinte à captura do general, ao qual prestou grande atenção, mas que julgou ambíguo; em seguida, com todo o exército (escreve Hume), Xenofonte considerou que o espirro (não fica claro se é o espirro de uma forma geral ou se é o espirro de alguém específico) era um presságio muito favorável (o resgate do espirro é, na verdade, uma expansão do comentário sobre um texto de Plutarco no qual um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon, a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada).
quinta-feira, 18 de setembro de 2025
50 desenhos
2) Sobre o projeto de Oswald, escreve Rivera Garza: "É, portanto, em primeira instância, uma pilhagem. A poesia olha de soslaio para a história e, com o bisturi na mão, retira do pântano de dados e anedotas o momento único e indivisível em que um ser humano perde sua vida. Afinal, isso é a guerra; é disso que se trata a guerra: como seres humanos de carne e osso perdem suas vidas violentamente. Armado, então, com os instrumentos da poesia, Oswald arranca essa perda que é a morte do acúmulo de dados ou de sangue que tantas vezes leva à indiferença, à insensibilidade ou a leituras desconexas" ("Usos do arquivo: do romance histórico à escrita documental", Os mortos indóceis, trad. J. R. Terron, WMF Martins Fontes, 2024, p. 150).
3) De resto, a pilhagem também é um tema homérico, parte constituinte do mundo da guerra homérica: viajar, conquistar, pilhar, retornar (nesse sentido, o procedimento poético de Oswald - semelhante àquele de María Negroni em livros como Archivo Dickinson ou Objeto Satie ou Cartas extraordinarias, precisamente o procedimento da pilhagem, do rearranjo do que já existe, etc - é homérico não só em seu tema ou conteúdo (os 200 soldados reiterados, singularizados), mas em sua dinâmica formal, na transformação da pilhagem em método de organização da poesia (que se desdobra em um segundo ponto fundamental: a enumeração, como aquela que faz o próprio Homero com as naus, por exemplo).
domingo, 14 de setembro de 2025
200 soldados
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Aquiles fazendo um sacrifício, "Ilias Picta" manuscrito do séc. V, Biblioteca Ambrosiana |
1) Em seu ensaio sobre os "usos do arquivo" na literatura (terceiro capítulo de seu livro Os mortos indóceis), Cristina Rivera Garza comenta um trabalho da poeta britânica Alice Oswald, Memorial. An Excavation of the Iliad, no qual ela descarta "sete oitavos" do poema de Homero, resgatando apenas as mortes: Oswald filtra o texto homérico a partir do critério das cenas de morte, deixando na superfície de seu próprio texto apenas o registro da morte de aproximadamente duzentos soldados. Toda morte que aparece em Homero é, ao mesmo tempo, geral e específica - diz respeito ao evento incontornável da morte, que chega a todos, mas diz respeito também às especificidades daquele destino (um destino que envolve, no âmbito do poema, a maestria de Homero no trato com os detalhes: a cabeça separada do corpo; o homem curvado como chumbo).
2) O objetivo principal de Rivera Garza no resgate do trabalho de Oswald (que pode ser lido em paralelo com aquele, mais celebrado e conhecido, de Anne Carson) é comentar e enfatizar a presença dos mortos, pelo viés da "vida precária" de Judith Butler (os soldados mortos como efeito colateral da manutenção do poder, da soberania e assim por diante); o que me interessa, por outro lado, é o modo como o procedimento poético de Oswald garante seu alinhamento a uma linhagem complexa e produtiva da história literária: o uso da forma breve para apreender um conjunto de vidas - uma linha associativa que abarca Vidas dos artistas de Vasari, Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, as Vidas minúsculas, de Pierre Michon, e assim por diante.
3) Oswald transforma os soldados de Homero em vinhetas biográficas; conta suas vidas na guerra a partir do evento da morte, apresentando seus nomes em caixa alta dentro dos versos do poema: PROTESILAUS, ECHEPOLUS, ELEPHENOR, SIMOISIUS, LEUKOS, DIORES, PIROUS, etc, como entradas de uma enciclopédia ou dicionário. É Oswald quem diz, no prefácio: "Minhas ‘biografias’ são paráfrases do grego; meus símiles, traduções. Entretanto, minha abordagem da tradução é bastante irreverente. Eu trabalho bem colado ao grego, mas em vez de transpor as palavras para o inglês, eu me valho delas como fendas através das quais se vê o que Homero estava mirando" (tradução aqui).
quinta-feira, 11 de setembro de 2025
Contra Flaubert
De fato, detesto Flaubert.
Só mesmo um macho francês
esnobe cheio de si
para zombar a tal ponto
dos sonhos de uma mulher.
Um macho,
quer dizer,
alguém que não sonha.
(Os homens sempre tiveram
ciúmes dos sonhos das mulheres
porque não podem controlá-los.)
Flaubert sonhou Emma Bovary,
mas pode-se dizer, com toda a certeza,
que Emma Bovary jamais sonhou Flaubert.
(No final de seus dias, Flaubert estava
farto da fama de Madame Bovary.
Ela era mais célebre que ele.)
(Cristina Peri Rossi, "Contra Flaubert", Aquela noite (1996), in: Nossa vingança é o amor: antologia poética (1971-2024), edição bilíngue, seleção e tradução de Ayelén Medail e Cide Piquet, São Paulo: Editora 34, 2025, p. 110)
sábado, 6 de setembro de 2025
Alice, Lincoln, Ford
2) O mecanismo narrativo básico do filme de Wenders é o da incorporação: fragmentos alheios à cronologia progressiva do filme que são costurados à história; acontece com a capa de Handke e com o filme de Ford, mas acontece também - e sobretudo - com as fotografias instantâneas que o protagonista faz com sua Polaroid ao longo de todo o filme (a primeira cena mostra o protagonista olhando e rearranjando o conjunto das fotografias que tirou até aquele momento, um passado fragmentado que irrompe no presente da narrativa: um passado que pode ser reposicionado, montado, embaralhado, como nas lições de montagem de Aby Warburg e, na esteira desse, Georges Didi-Huberman).
3) Como na fotografia que surge na abertura de A invenção da solidão, de Paul Auster, é também uma fotografia - retirada da bolsinha que Alice leva no pescoço - que reconfigura o percurso do filme: o protagonista e a menina precisam seguir viagem para encontrar alguém que se responsabilize por ela; será a avó; a menina tem uma fotografia da casa (mas não sabe onde é); como no frame do filme sobre Terezín que Sebald incorpora em Austerlitz (a mãe que, aparentemente, surge veloz, como um relâmpago, reconfigurando o percurso/narrativa de Jacques Austerlitz), e eles começam a percorrer a Alemanha de carro em busca do referente real que faz jus à imagem e que permitirá a conclusão da história (que é, mais uma vez, suspensa, postergada, quando a casa finalmente aparece - quem mora lá, agora, é "uma italiana", diz a menina).