terça-feira, 5 de agosto de 2025

Lacunas foucaultianas



1) Descobri recentemente a resenha de Martha C. Nussbaum do segundo volume da História da sexualidade, de Michel Foucault, publicada em 10 de novembro de 1985 no The New York Times; ela, já de saída, lamenta a morte desse pensador "sério e corajoso" (Foucault morre no ano anterior, em 25 de junho de 1984) e, junto desse primeiro lamento, lamenta também que sua obra mais recente seja desapontadora. Segundo Nussbaum, o tratamento que oferece Foucault da Antiguidade, especificamente dos textos em grego (ela menciona especificamente certa ingenuidade de Foucault no tratamento dos textos "hipocráticos", aos quais ele não dá a devida atenção no que diz respeito à ampla variação de contextos e épocas de circulação dos variados textos, a grande maioria não sendo de autoria de Hipócrates, e sim, precisamente, de hipocráticos), é pouco rigoroso. 

2) Em vários pontos do texto, as críticas de Nussbaum são válidas e estimulantes, embora em certos momentos ela critique o projeto de Foucault não pelo que apresenta, mas pelo que deixa de apresentar (nenhuma menção às peças de Aristófanes, por exemplo), argumento que acaba se tornando contraproducente para a própria crítica, já que algo sempre vai faltar, algo sempre vai ficar de fora, mesmo no trabalho mais sistemático (e é precisamente a sistematicidade que é transformada pela trajetória de Foucault como um todo, que Nussbaum é a primeira a elogiar). 

3) A crítica de Nussbaum dá a impressão de que, para ela, o projeto de Foucault como um todo é válido e estimulante, até o ponto específico em que se choca com seu campo de estudos (talvez ela se identificasse com o trabalho não-convencional de Foucault, em algum nível?, especialmente levando em consideração que, em 1982, Harvard negou seu processo de tenure?), algo que se insinua quando ela critica a dependência de Foucault das traduções: "Para começar, Foucault é automaticamente excluído de qualquer evidência que não seja traduzida (isso inclui algumas evidências cruciais sobre mulheres, para as quais a atenção do livro é, de qualquer forma, desigual), e está condenado a depender dos caprichos dos tradutores para o restante. Ignorando completamente a história política e social grega e os problemas acadêmicos que cercam os textos que utiliza, ele não consegue situar com segurança o que lê."

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Limites, criação



"O verdadeiro mérito da filosofia da história de Vico não reside naquilo que ela nos ensina sobre o processo histórico e o ritmo de suas sucessivas fases. Em seu sistema, a divisão da história humana em épocas e a tentativa de descobrir nelas uma certa ordem - a transição da era divina para a era heroica e da era heroica para a era humana - ainda são atormentadas por características fantásticas. O que Vico vê claramente, e sustenta com toda energia diante de Descartes, é a peculiaridade metodológica, o valor próprio do conhecimento histórico em termos de método. (...)

De acordo com Vico, o verdadeiro objetivo do nosso saber não é o conhecimento da natureza, mas o autoconhecimento humano. A filosofia que, em vez de se contentar com isso, postula um conhecimento divino ou absoluto transgride seus próprios limites e se deixa levar por delírios perigosos. A regra suprema do conhecimento é, para Vico, o princípio segundo o qual nenhum ser penetra no conhecimento verdadeiro, mas naquilo que ele mesmo cria. O campo do nosso conhecimento nunca se estende além dos limites da nossa própria criação. (...)

Mito, linguagem, religião, poesia: esses são os objetos verdadeiramente adequados ao conhecimento humano. Esses são os objetos que Vico examina de maneira primordial no sistema de sua lógica"


(Ernst Cassirer, Ciências da cultura, trad. César Benjamin, Contraponto, 2024, p. 18-20)

domingo, 27 de julho de 2025

A cabeça de Netuno



1) Na sua Carta sobre os surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam (publicada em 1751, poucos meses antes do primeiro volume da Enciclopédia), Diderot cobre uma série de temas e apresenta uma constelação de cenas heterogêneas - algo bastante típico do ambiente "iluminista" em geral. Chama a atenção as citações nas línguas originais que faz Diderot - Homero citado do grego, Virgílio e Lucrécio citados do latim, Torquato Tasso citado do italiano - e, dentro desse tópico, chama a atenção o cuidado de Diderot na circunscrição de seus comentários à letra do texto, um método de leitura cerrada que, de resto, como Diderot sabia bem, começou (em certa medida) com os gramáticos alexandrinos em seu trabalho com Homero. 

2) Um dos momentos mais interessantes da carta de Diderot é quando ele discute os momentos em que uma passagem do literário ao visual não é garantida, desejada ou mesmo esteticamente congruente. Para construir o argumento, Diderot resgata uma passagem da Eneida de Virgílio, os versos 124-127 do primeiro Livro: "Netuno percebeu que o mar se agitava com grande ruído e que águas tranquilas do fundo estavam em revolta; violentamente abalado, olha para o alto desde o fundo, erguendo a cabeça acima das ondas". 

3) Diderot argumenta que aquilo que funciona no poema, não funcionaria na pintura - como levar à tela a imagem impressionante do deslocamento do deus das profundezas em direção à superfície? Tudo que a pintura poderia mostrar, no caso específico desses versos, é a imagem do deus degolado, Netuno como uma reles cabeça decepada flutuando no mar, nada mais distante da magnificência produzida pelos versos de Virgílio, que colocam em contato a transformação do destino de Enéias (que sofre no mar) e a súbita consciência de Netuno de que algo não está correto em seus próprios domínios.  

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Os dois sacrifícios



Sócrates como o poeta que abandona a vida para provar seu ponto; que cede aos caprichos dos governantes, mesmo podendo escolher o exílio; leva ao limite sua doutrina, sua posição, leva ao limite a consciência de ser apenas uma gota no oceano, apenas mais um grão de areia na praia (a morte que poderia ser evitada é o corolário da ideia de que "só sei que nada sei"). Nesse sentido, Sócrates prepara o terreno para Jesus, pois é quem prepara o terreno do martírio, ou seja, da valorização filosófica do auto-sacrifício como procedimento de defesa de uma crença, de uma doutrina. 

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O caminho que leva até Paulo e suas epístolas é o caminho que leva do sacrifício de Sócrates àquele de Jesus; Paulo, alimentado pela filosofia grega prévia (boa parte dela envolvida com a tarefa de fazer sentido do sacrifício de Sócrates, ou seja, fazer sentido da relação entre palavra e verdade, liberdade e política e assim por diante), reconfigura e reorganiza o sacrifício prévio de Sócrates em uma nova moldura doutrinal, tornada possível pelo sacrifício de Jesus; as estruturas teóricas de Platão e Paulo são montadas sobre os legados desses dois cadáveres célebres (condenados em julgamentos, executados com método, dentro de um ritual previamente estabelecido). 


segunda-feira, 21 de julho de 2025

A infraestrutura socrática



1) A complexidade da morte de Sócrates: apesar de ser uma espécie de "herói de guerra" (Sócrates serviu como hoplita na Guerra do Peloponeso), ainda assim condenado (entre outras coisas) por sua falta de comprometimento com a ortodoxia que regia (ou que devia reger, na opinião daqueles que o condenaram) a cidade; condenado por corromper a juventude, mas não necessariamente por encaminhá-los em certa direção, mas por ensinar que existem outras direções; condenado por não corroborar "acriticamente" a dimensão religiosa da vida na cidade (a religião como braço da política, como ingrediente da coesão social), por defender uma sorte de conexão privada com a divindade - que é a velha discussão, tão bem resumida e desenvolvida por Plutarco, da relação de Sócrates com seu daimon pessoal.

2) Talvez, seguindo a linha de pensamento de Friedrich Kittler, seja possível dizer que parte do empreendimento de Sócrates foi o de instaurar uma nova via de comunicação com o divino: o poeta especulativo como um medium de contato entre o alto e o baixo, entre o dizível e o indizível, entre aquilo que pertence ao éter, à nuvem, ao cosmos, e aquilo que pertence ao baixo, ao acessível, aos sentidos, ao cotidiano; Sócrates constrói uma sorte de infraestrutura para a inauguração desse novo hub comunicacional - com a decisiva contradição, contudo, de que ele não coloca a mão na massa, não escreve, não registra, não inscreve sua inovação tecnológica (deixa a tarefa para Platão). 

3) Ou mesmo antes de Kittler, com Marshall McLuhan, na Galáxia de Gutenberg: "Antes de Sócrates, o saber fora o preceptor de como viver retamente e falar bem. Mas com Sócrates veio a cisão entre a língua e o coração. Era inexplicável que, de todas as pessoas, tivesse sido o eloquente Sócrates quem desse início à cisão entre pensar sabiamente e falar bem" (trad. Leônidas de Carvalho e Anísio Teixeira, Editora Nacional, 1977, p. 48).

terça-feira, 15 de julho de 2025

Um livro de Montaigne


Por acaso, pesquisando detalhes da relação entre Montaigne e Plutarco (ou melhor, a relação que Montaigne estabelece com Plutarco a partir da leitura das suas obras), encontro a notícia de um leilão de livros, a divulgação de um achado raro: o exemplar das Vidas de Plutarco que pertenceu a Montaigne - o traço distintivo e excepcional é precisamente a assinatura, Mõtaigne, na folha de rosto (que, no entanto, está riscada). A estimativa de valor para a venda do exemplar no leilão era de 30 mil euros; o livro terminou vendido por 369 mil euros. O exemplar de Montaigne é uma edição de 1565 da tradução que Amyot fez das Vidas de Plutarco.

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Montaigne nasce em 1533 e morre em 1592; Amyot morre um ano depois, em 1593, mas nascido 20 anos antes de Montaigne, em 1513. A partir de 1559, Amyot trabalha em Roma, traduzindo as Vidas de Plutarco a partir do exemplar do Vaticano; antes disso, já havia trabalhado em uma tradução de sete livros de Diodoro Sículo (publicada em 1554) e ainda fará a Moralia de Plutarco (1572). Com relação à tradução das Vidas, existe uma triangulação literária digna de nota: a tradução de Amyot é utilizada na Inglaterra por Thomas North para sua tradução ao inglês, tradução essa que é utilizada intensamente por Shakespeare para suas tragédias romanas (Julius Caesar (primeira apresentação em 1599), Antony and Cleopatra (primeira apresentação por volta de 1607) e Coriolanus (escrita provavelmente entre 1605 e 1608)).

sábado, 12 de julho de 2025

O tesouro de Boscoreale



1) Rostovtzeff, em seu livro Mystic Italy (de 1927), comenta a intensificação do sentimento religioso em Roma (e no mundo helenístico de forma geral) a partir do século II a.C: vários fatores contribuem para a situação, mas ele dá ênfase ao caos gerado pelas guerras civis (Mário e Sila; Pompeu e César; Antônio e Otaviano, até a Pax Augusta). A instabilidade da vida cotidiana, as mortes, desapropriações, massacres aleatórios - elementos que geram uma busca pelo "além" e um permanente temor diante da morte que pode ser iminente. Rostovtzeff retoma rapidamente o sexto canto da Eneida, de Virgílio, reconhecendo aí um horror do além típico da época.

2) Mais que isso: reconhece "blasfêmias" com relação aos mortos e ao além que não conseguem encobrir o medo e a impotência diante da fragilidade da vida. Já no parágrafo seguinte, Rostovtzeff liga a Eneida de Virgílio ao jogo de utensílios em prata encontrados em Boscoreale, o conhecido "tesouro de Boscoreale", hoje no Louvre. O mesmo sentimento percorre o sexto canto da Eneida de Virgílio e a decoração dos utensílios de prata, com seus esqueletos dançantes: a angústia permanente diante do horror da morte, que não é silenciada, e sim potencializada pelos procedimentos artísticos.

3) O tesouro de Boscoreale foi encontrado em nove de abril de 1895, em um sítio que havia começado a ser escavado em 1876; já no mês seguinte as peças são enviadas clandestinamente para a França por antiquários napolitanos; o Barão de Rothschild compra as peças e as doa para o Louvre; no ano seguinte, 1896, depois do escândalo do transporte clandestino, a escavação é retomada com maior vigilância: chega-se à conclusão que o tesouro havia sido escondido por conta da erupção do Vesúvio em 79. Além das taças com os esqueletos dançantes, o tesouro conta ainda com utensílios que serviam para mexer e misturar o vinho, travessas para transporte de comida, bem como artefatos que parecem puramente decorativos (com motivos animais e vegetais, cenas mitológicas e temas políticos, como as taças "de Augusto" e "de Tibério").