domingo, 22 de dezembro de 2024

Das narrativas verdadeiras



1) O aspecto mais interessante da fábula de Luciano de Samósata sobre seu encontro com Homero - que acontece em seu romance Das narrativas verdadeiras, paródia satírica e irônica dos textos fantásticos do passado e de crendices variadas - é a origem "estrangeira" que ele confere ao poeta. O encontro acontece na "Ilha dos Beatos", onde estão também Pitágoras, Ulisses, Sócrates, entre outros. 

2) Essa diluição da solenidade da origem é muito interessante: Luciano resgata no além o poeta original por excelência, o Homero que serve de exemplo e de repositório de sabedoria para tantos autores das mais variadas estirpes, ressaltando, contudo, que ele não era grego, e sim um bárbaro: só depois de ter se tornado refém dos gregos, ou seja, escravo de guerra, ele muda de nome e assim por diante (todo o movimento de Luciano é já uma paródia do mergulho nos mundo ínferos em busca de revelações e descobertas, como a katabasis do Canto XI da Odisseia, ou o Canto VI da Eneida de Virgílio).

3) Será que a reconstrução irônica que faz Luciano das origens de Homero tem alguma relação com seu primeiro tradutor para o latim, Lívio Andrônico? Nascido por volta de 284 a.C., na cidade que hoje é Tarento, Andrônico foi levado prisioneiro quando os romanos invadem a cidade em 272; vai como escravo para Roma e começa a trabalhar para a família Lívia como professor dos filhos de seu senhor. Foi nessa condição pedagógica que percebeu a falta de material adequado para o exercício do ofício - diante disso, por volta de 240, decide traduzir a Odisseia, de Homero, para o latim.


sábado, 21 de dezembro de 2024

Homero babilônio


"Ainda não haviam decorrido dois ou três dias quando me dirigi ao poeta Homero, quando ambos estávamos sem fazer nada, e informei-me entre outras coisas de onde ele era, dizendo-lhe que isso entre nós é ainda agora o tema mais investigado. Declarou que ele próprio não ignorava que alguns julgavam que fosse de Quios, outros de Esmirna e muitos de Cólofon. Disse, entretanto, ser babilônio e que, junto aos seus concidadãos, não de Homero, mas de Tigranes era chamado, mas que mais tarde, tendo-se tornado refém dos gregos, trocou de nome.

[nota da tradutora Lúcia Sano: Jogo de palavras: em grego, a palavra hómeros pode significar refém]

Ainda perguntei-lhe acerca dos versos espúrios, se por ele haviam sido escritos. Declarou que todos eram seus. Percebi então a grande tolice dos gramáticos seguidores de Zenódoto e Aristarco.

[Luciano zomba de dois filólogos alexandrinos: Zenódoto de Éfeso (ca. 333-260 a.C.), o primeiro editor de Homero, segundo a Suda, e Aristarco da Samotrácia (ca. 216-144 a.C.), que excluíam do texto homérico versos que não eram considerados genuínos por eles]

Já que ele havia respondido de modo satisfatório a tais questões, perguntei-lhe por que havia feito da "ira" o princípio e ele disse que daí havia partido sem nenhum propósito.

[Luciano refere-se ao fato de que a Ilíada começa com a palavra "ira" (mênin), o que levou os críticos, desde a Antiguidade, a considerar que se trata de uma escolha intencional do poeta]

Além disso, eu desejava saber se primeiro havia escrito a Odisseia, antes da Ilíada, como muitos dizem. Ele negou. Que nem cego era, algo que também dizem a seu respeito, eu soube imediatamente, pois o via, de tal forma que não tive necessidade de questionar. Com frequência fiz isso outras vezes, se acaso eu o visse sem fazer nada. Aproximando-me, interrogava-o e ele de bom grado respondia tudo, sobretudo depois do processo, já que o venceu - pois houve uma acusação de calúnia contra ele, feita por Tersites, por tê-lo ridicularizado em seu poema, da qual Homero foi absolvido, tendo Odisseu como seu advogado"

(Luciano de Samósata, Biografia literária, "Das narrativas verdadeiras: segundo livro", editora da UFMG, 2015, p. 168-169)


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Josefina



1) O conto de Kafka sobre "Josefina", a cantora do povo dos camundongos, é, entre muitas coisas, uma meditação sobre as relações entre fala e escrita: não há qualquer menção no conto à dimensão escrita da literatura/narrativa, apenas sua dimensão oral - é pelo som, única e exclusivamente, que Josefina se comunica e é apenas pelo som que seu povo interpreta sua atuação, sua performance, que é, simultaneamente, estranha e familiar, atraente e repulsiva. Tanto é esse o caso que, no final do conto, a performance oral de Josefina é ligada à possibilidade do esquecimento (e é precisamente pelo viés da memória que a escrita é condenada por Platão, como relembra Jacques Derrida quando escreve sobre o pharmakon).

2) No caso específico de Kafka e da tradição judaica que ele movimenta e resgata no conto sobre "Josefina", o recurso à oralidade por parte da cantora e de seu povo tem relação, também, com a sobrevivência: o povo dos camundongos é um povo que vive nos subterrâneos, que só pensa em trabalho porque é precisamente esse foco que garante sua sobrevivência. A oralidade, nesse caso, é algo que pode ser mantido dentro de um círculo de confiança: a narrativa circula entre ouvidos preparados, em uma escuta coletiva que é preparada de geração para geração, para evitar o contágio externo (e, nesse ponto específico do contágio, existem contatos importantes entre a tradição judaica e a grega: a tragédia grega do século V a.C. é carregada de uma permanente angústia do contágio).

3) Da conjunção da tradição oral com o esquecimento surge um terceiro tema, também fundamental para Kafka: o silêncio (é possível pensar na fábula póstuma "O silêncio das sereias"), que pode ser interpretado não apenas como o fim necessário de toda narrativa/literatura, mas também como o fim inescapável de todo pensamento (como um contemporâneo de Kafka, Wittgenstein, aponta em seu Tractatus, de 1921: "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar"). "Chegará logo o tempo em que seu último assobio vai soar e emudecer", escreve Kafka sobre Josefina no penúltimo parágrafo do conto. Roberto Calasso: "Para Kafka, o 'povo dos ratos' seria sempre a imagem última da comunidade" (K., trad. Samuel Titan Jr., Cia das Letras, 2006, p. 261)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

O carvalho de Coriolano



1) Na vida de Coriolano, logo no início, na terceira seção, Plutarco conta como o então jovem guerreiro recebeu de seu comandante uma coroa feita das folhas do carvalho, concedida àqueles que salvam um companheiro de armas ao protegê-lo com o escudo. Como é típico de Plutarco (e, sem dúvida, um dos elementos que asseguram o valor do seu estilo ao longo dos séculos), ele inicia uma digressão aproveitando o tema do "carvalho": árvore que remete aos arcádios e à Arcádia, a mais fértil entre as árvores selvagens e a mais vigorosa entre as árvores cultivadas; "convém não esquecer", acrescenta Plutarco, que o carvalho oferece nutrição com suas "bolotas", além de ser fonte do hidromel, além de auxiliar na caça às "aves comestíveis" ao fornecer seu "visgo".

2) Como também acontece frequentemente em Plutarco, muitas das referências mobilizadas ao longo das digressões servem para uma valorização, ainda que enviesada, do mundo grego. É esse o caso na evocação das bolotas dos carvalhos: entre parênteses, Plutarco escreve que um "oráculo" certa feita chamou os arcádios de "comedores de bolotas". Uma das ocorrências dessa expressão está na Anthologia Palatina, que apresenta esse "Oráculo da Pítia", de autoria desconhecida: "Pedes a Arcádia? Muito pedes tu – não ta darei! / Na Arcádia há muitos homens comedores de bolotas / que se te interporão" (Heródoto (1.66), que transmite o oráculo, diz que ele foi dado pela Pítia aos Espartanos).

3) Nos versos 20-21 da décima Bucólica, Virgílio resgata um de seus pastores, Menalcas, e o apresenta "molhado pela colheita da bolota"; em nota, o tradutor João Pedro Mendes acrescenta: "A apanha do fruto do carvalho, para sustento dos porcos e bois na invernia, é executada na estação chuvosa e fria. O pastor chega molhado devido a essa tarefa de inverno. Também pode interpretar-se de outro modo. Catão, De Agric., 54, e Columela, VII, 9, 8, informam que os rústicos conservavam as bolotas em água para uso posterior" (p. 314-315, n. 18). No Canto XIII (versos 409-410) da Odisseia, Homero faz Ulisses reencontrar Eumeu e descreve as atividades dos porcos deste último: bebem água turva e comem muitas bolotas gostosas, próprias para a engorda.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Verdade e justiça



"A escolha dos sintomas que são os intraduzíveis, assim, deriva da atenção às homonímias, percebidas em uma língua apenas do ponto de vista ou em função de outra língua. Por exemplo, em russo: pravda, que por costume, com ajuda do nome de um jornal, vertemos como vérité ['verdade'], significa, antes de tudo, justice ['justiça'] (é a tradução consagrada do grego dikaiosune], e é, portanto, um homônimo quando visto do francês. Por outro lado, nossa vérité é um homônimo do ponto de vista eslavo, pois o termo sobrepõe pravda, relativo à justiça, a istina, relativo ao ser e à exatidão.

O mesmo se aplica à ambiguidade 'para nós' da raiz svet, 'luz' / 'mundo', assim como à problemática homonímia de mir, 'paz', 'mundo' e 'comuna camponesa', com a qual Tolstói não para de jogar em Guerra e paz. Podemos desenrolar, sem dúvida, quase todo o dicionário puxando esse fio. Pois obviamente não se trata apenas de termos isolados, mas de redes: o que o alemão significa por Geist será às vezes mind e às vezes spirit, e a Phänomenologie des Geistes será às vezes of the Spirit, às vezes of the Mind, fazendo de Hegel um religioso espiritualista ou o ancestral da filosofia do espírito"

(Barbara Cassin, Elogio da tradução. Complicar o universal, trad. Daniel Falkemback e Simone Petry, WMF Martins Fontes, 2022, p. 81-82)

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Um único epíteto


Na quarta seção de "O imortal", o conto que Borges publica pela primeira vez em fevereiro de 1947, na revista Anales de Buenos Aires, e que depois, em 1949, reaparecerá no seu livro O aleph, o autor escreve que ser imortal é insignificante: todas as criaturas o são, pois ignoram a morte (exceto o homem, que tem a morte como horizonte permanente). Dada a abstração da imortalidade, o narrador de Borges chega à conclusão de que, num prazo infinito, a todo homem acontecem todas as coisas; as virtudes anulam as infâmias, e vice-versa, seja do passado, seja do futuro. E nesse ponto, costurada à reflexão abstrata e metafísica, surge um comentário literário, uma brevíssima interpretação, um fugaz juízo de valor, muito ao estilo de Borges: esse jogo de equivalências tende ao equilíbrio, escreve Borges, e talvez o rústico Poema do Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto das Églogas ou por uma sentença de Heráclito.

Essa aparição relâmpago de Virgílio é reveladora, especialmente em um conto que fala tanto de Homero, que depende tanto da fortuna póstuma e milenar das palavras e da figura mítica de Homero. Virgílio aparece em vários momentos da obra de Borges, mas nesse ponto específico de "O imortal" ele não é nominalmente mencionado, algo que certamente não contribui para a contagem estatística da presença de Virgílio na obra de Borges - mas a ênfase é decisiva: "um único epíteto das Églogas", é o que basta (é possível também insistir que Borges trabalha, em vários momentos, a partir de uma triangulação canônica que, para ele, é inquestionável: Homero, Virgílio, Dante).

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Der Ister


1) Com os textos sobre Hölderlin, Heidegger muda de elemento - passa da terra (do solo, preponderante em Ser e tempo - "ter uma casa atrás de si", como escreve Sloterdijk) para a água e, com isso, propõe uma nova fenomenologia do habitar. Durante a guerra, em 1942, Heidegger oferece na Universidade de Freiburg um curso sobre Hölderlin, sobre o poema dedicado ao rio Danúbio, Der Ister. O canto dos rios se funde aos cantos da poesia, da mesma forma que a ressonância do espaço externo estabelece contato com a paisagem imaginativa dos sujeitos (na Eneida de Virgílio, por exemplo, o Tibre surge como um deus). 

2) A corrente do rio, sua dimensão de movimento constante, evoca a instabilidade do Ser - o movimento do rio é tanto a "localidade do que é errático" quanto a "erraticidade do que é local". O Danúbio evoca um pertencimento específico, que não é aquele dos oceanos, ou mesmo aquele do Mediterrâneo; ao mesmo tempo, é seu curso que garante, para Heidegger, uma ligação entre a Alemanha e a Grécia, uma ligação que pode ser fundada no espaço, a partir de um conjunto de coordenadas geográficas específicas (um rio "que parece correr ao contrário"). A Antígona de Sófocles permite a Heidegger articular a leitura inicial de Hölderlin (tradutor do grego) com seu encaminhamento da reflexão em direção à política e ao uso do território (pois Antígona desafia a ordem do soberano com relação ao uso da terra, do espaço).

3) É outro, contudo, o Danúbio que encontra Claudio Magris algumas décadas depois (embora seja curioso o fato da publicação do curso de Heidegger sobre Hölderlin ser póstuma e ter sido realizada em 1984 - apenas dois anos antes do lançamento de Danúbio, a obra-prima de Magris): Magris relata sua passagem pela casa de Elias Canetti, por exemplo, mas essa casa nada tem a ver com o solo, tampouco está ancorada na paisagem imaginativa dos sujeitos - é apenas um ponto de passagem, uma posição contingente dentro de uma cartografia provisória.