sábado, 6 de dezembro de 2025

Licurgo leitor

Retrato de Licurgo
Pierre Michel Alix, 1793 - 1795

1) Como Plutarco está permanentemente envolvido com a interpretação de textos e com o confronto comparatista com as fontes, é lógico esperar que muitos de seus personagens sejam retratados em momentos de leitura, de descoberta de textos: Licurgo, por exemplo, é exaltado por sua descoberta dos poemas de Homero - Plutarco diz que, na época de Licurgo, trechos da obra homérica já eram conhecidos, mas que Licurgo foi o primeiro a tornar pública a obra escrita em sua completude.

2) Plutarco conta que Licurgo era irmão mais novo de Polidectes, rei de Esparta; com a morte do irmão, Licurgo foi levado ao trono; quando soube que a mulher de Polidectes estava grávida, Licurgo de imediato declarou que, caso fosse um menino, este sim seria o rei de Esparta por direito - a partir desse ponto, Licurgo governou "na qualidade de tutor", escreve Plutarco. As mais variadas intrigas, contudo, forçaram Licurgo a se afastar temporariamente de Esparta - foi durante essa viagem que ele chega na Jônia, saindo de Creta; foi na Jônia que Licurgo encontrou os poemas de Homero.

3) Plutarco escreve (Vida de Licurgo, IV) que, "segundo consta", os poemas de Homero eram conservados pelos descendentes de Creófilo de Samos (que teria sido discípulo e amigo de Homero; segundo alguns, seu genro). Segundo Plutarco, Licurgo reconhece nos poemas não apenas passagens compostas para o prazer e o deleite, mas também - e sobretudo - preceitos de política e de educação, que são muito mais valiosos - por isso, Licurgo se põe imediatamente a copiá-los para levá-los para Esparta. O Licurgo de Plutarco, portanto, é um ouvinte que se transforma em copista e leitor - um ouvinte/leitor tendencioso, que reconhece em Homero aquilo que se encaixa em sua visão de mundo de soberano e legislador.  

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Admirável mundo novo

Inscrição do Dípilon, c. 740 AEC


1) O percurso que leva de Homero a Platão como o percurso que leva da oralidade à escrita: em Homero, as fórmulas mnêmicas trabalhadas e retrabalhadas pelo poetas itinerantes, ao longo de séculos; em Platão, a escrita em processo de internalização, fazendo parte constituinte, portanto, do pensamento e de sua organização - não mais as fórmulas orais que podiam ser rearranjadas dependendo do tempo que o vocalizador tinha à disposição (evidência de uma autoria coletiva e comunitária, como defendeu Vico), mas o sistema de um pensamento posto por escrito, que pode se basear em etapas aparentemente desconectadas.

2) A exclusão dos poetas da República, proposta de Platão, é indício precisamente desse embate entre oralidade e escrita: a exclusão é a solução narrativa de uma angústia diante de um modo tradicional de pensamento, um pensar oral agregativo e dependente da presença (e, por isso, limitado às condições temporais, atmosféricas); é precisamente esse tipo de limitação que Platão quer eliminar, a favor de um sistema de registro, manifestação e difusão que fosse lógico e dissecativo, e que pudesse garantir sua perduração (itens e subitens na argumentação de Platão são indício, de resto, dessa alfabetização do pensamento: unidades recombinantes por meio da visualização escrita).

3) A ambivalência de Platão com relação à escrita é também indício desse peculiar ponto que ele ocupou entre um sistema e outro, entre uma mentalidade e outra (a centralidade de Platão para o pensamento ocidental, de resto, é também indício da centralidade do alfabeto grego de uma forma geral, já que a inovação das vogais permite que esse alfabeto seja utilizado para a escrita de muitos outros idiomas). Homero, por isso, se torna canônico: é o modelo a ser ultrapassado precisamente porque já não pode ser acessado, que dirá ultrapassado, uma vez que diz respeito a um mundo (um modo de pensar, de experimentar o mundo) que não existe mais (mas que sobrevive, fantasmaticamente, na tessitura do novo pensamento escrito).  

sábado, 29 de novembro de 2025

Março de 1985

Joseph Brodsky, Carl Proffer e Ellendea Proffer

1) Em março de 1985, quarenta anos atrás, portanto, Joseph Brodsky aparece na The New York Review com um In Memoriam: Brodsky celebra Carl R. Proffer, falecido aos 46 anos em setembro do ano anterior, 1984; Proffer e sua esposa Ellendea, escreve Brodsky, transformaram o panorama da literatura russa em tradução nos Estados Unidos, feito realizado a partir de um "porão em Ann Arbor, Michigan", sede da editora Ardis e da revista Russian Literature Triquarterly, fundadas por eles. Brodsky finaliza informando que no dia primeiro de abril de 1985, na Biblioteca Pública de Nova York, um memorial service será realizado, um "tributo especial" encabeçado por ele, Brodsky, Susan Sontag, Vartan Gregorian, "and distinguished others".

2) Em sua biografia de Brodsky (Yale Press, 2011, p. 175), Lev Loseff informa que foi precisamente Proffer quem garantiu trabalho para Brodsky nos Estados Unidos (na Universidade de Michigan) depois que ele foi expulso da União Soviética; a grande sorte, escreve Loseff, foi que Proffer estava na União Soviética quando a expulsão aconteceu; nessa época, continua Loseff, Proffer já era uma estrela em ascensão no mundo acadêmico, com dois livros publicados, o primeiro sobre Gógol, o segundo sobre Nabokov (que deu a Proffer, imensa prova de confiança, os direitos para tradução de todas suas obras russas); a editora de Proffer e da esposa, Ardis, recebe o nome da casa de família do romance Ada, de Nabokov.

3) Loseff especifica que o porão onde existia a editora era o porão da construção de um antigo clube de golfe; para Brodsky, escreve Loseff, Proffer era mais do que um amigo, era "quase família"; parte do trabalho de publicação em inglês da literatura russa do século XX, pela Ardis, contou com a colaboração de Brodsky: lendo e relendo, sugerindo e vetando, montando os tipos na prancha, fazendo pacotes, organizando lançamentos e mesas de discussão e assim por diante. 

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Queen and Country



1) O movimento mais interessante de Georges Didi-Huberman em seu ensaio sobre Steve McQueen (no livro Sobre o fio) está na aproximação que realiza da obra deste (especificamente seu uso dos selos postais) com as "intuições teóricas de Aby Warburg e Walter Benjamin sobre o tempo das imagens pensado como jogo complexo do desejo do 'após-viver' (Nachleben)" (p. 66), na medida em que, em um mesmo gesto, dá lastro teórico-histórico a uma produção contemporânea e, com o uso precisamente do contemporâneo como pano de fundo, renova o que pode ser visto (e os modos de uso) nas teorias do passado. 

2) É justamente por conta de sua precariedade que o selo vale; ele deve ser sutil para que seja útil, para que não pese: Queen and Country é uma obra de arte de 2007 de Steve McQueen; consiste em um conjunto de 155 folhas de selos, cada folha homenageando um soldado morto na Guerra do Iraque entre 2003 e 2008 (a obra foi uma encomenda conjunta do Manchester International Festival e do Imperial War Museum, mas o governo recusa a proposta do artista de efetivamente usar os selos da obra de arte como selos comuns, de circulação tradicional).

3) Warburg, escreve Didi-Huberman, foi "o único grande historiador da arte a se interessar verdadeiramente pelos selos postais" (p. 73); foi um colecionador apaixonado; submeteu ao editor Teubner, em 1913, um projeto de livro sobre o tema; o selo, para Warburg, manifestava "ao menos duas das grandes potências antropológicas que ele se esforçava por tornar manifestas na história das imagens: a migração no espaço (Wanderung)" e a "migração no tempo (Nachleben)"; Warburg incluiu selos em seu Atlas, inclusive (além de ter feito ele próprio desenhos para selos que não se concretizaram), como mostrou uma exposição recente, "Aby Warburg and the Politics of the Stamp".

sábado, 22 de novembro de 2025

La cena



1) Um filme de 1998 de Ettore Scola, La cena: a história se passa inteiramente dentro de um restaurante, na cozinha e no salão, imediatamente antes da chegada dos clientes, durante os vários jantares e, por fim, o final - as despedidas, o carteado da dona do restaurante com alguns dos clientes mais íntimos, etc. Uma lição de estratificação dos espaços: um pouco como o paradoxo de Zenão aplicado à dramaturgia, ao roteiro, à mise en scène: é possível fatiar, seccionar o espaço disponível sem nunca chegar ao fim (não é só o restaurante, é a divisão entre cozinha e salão; mas não é apenas o salão, e sim o fundo (com o banheiro, por exemplo, via de escape) e a frente (próximo à porta, a varanda, com uma ampla mesa ocupada pelos adolescentes).

2) Nesse sentido específico do uso do espaço, é um filme que evoca Georges Perec, a estratificação e multiplicação dos espaços dentro do espaço que ele faz em Vida modo de usar, de 1978, mas também a observação detida do que acontece em um espaço restrito dentro de um recorte específico de tempo - Tentativa de esgotamento de um local parisiense, de 1975 (em outubro de 1974, Perec se instalou por três dias seguidos na praça Saint-Sulpice, em Paris; anotou tudo o que via: acontecimentos cotidianos da rua, pessoas, veículos, animais, nuvens, o passar do tempo). Do universo de Bohumil Hrabal, especialmente Eu servi o rei da Inglaterra, vem o contraste entre a passividade dos clientes e a agitação dos garçons, além, é claro, da proliferação rabelaisiana dos comes e bebes.

3) No início de seu livro Nostalgia do absoluto, de 1974, George Steiner levanta a hipótese que a organização dada por Freud das instâncias do inconsciente tem relação direta com a planta da casa típica vienense (the famous division of human consciousness - the id, ego, superego - has in it more than a hint of the cellar, living quarters, attic anatomy of the middle-class home in Vienna at the turn of the century). O filme de Scola caminha nessa direção: existem ao menos dois espaços reservados, destinados para as revelações escandalosas, para os excessos - em primeiro lugar, evidentemente, o banheiro e, em segundo lugar, uma peça adjacente à cozinha, onde fica o freezer e que, muito adequadamente, tem uma porta que bloqueia o ruído de fora (utilizada quando a dona do restaurante conta segredos para sua irmã).   

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Lições de dança



1) Uma das coisas que chamam a atenção durante a leitura da breve novela de Bohumil Hrabal, Lições de dança para idosos, de 1964, é a quantidade de suicídios: muitos personagens, nos mais variados contextos, decidem pela morte pelas próprias mãos; o motivo principal, que organiza boa parte dessas ocorrências, é a desilusão amorosa - de resto, tema forte e constante de Hrabal, sempre interessado no corpo, no sexo, no toque, no orgasmo, no beijo (em Trens rigorosamente vigiados, por exemplo, novelinha do ano seguinte, 1965, o controlador de tráfego da pequena estação onde trabalha o narrador se chama "Hubička", cujo significado literal, em tcheco, é "beijoca" (é o que informa o tradutor Luís Carlos Cabral em nota)).

2) De onde Hrabal tira esse estilo convulsivo e heterogêneo? Lições de dança para idosos, por exemplo, é uma novelinha feita de uma frase só, com ideias e cenas separadas apenas por vírgulas, sem qualquer preocupação com coesão ou lógica na junção de uma história a outra - o que organiza o todo é a voz do narrador, que aparentemente está contando suas histórias para um grupo de mulheres (dançarinas?) no que parece ser um ajuntamento vestido nos fundos do terreno de uma igreja. Diante desse fluxo, e pensando na data de lançamento (e de produção de Hrabal de uma forma geral), vem à cabeça, sem dúvida, o Ulisses de Joyce - que teve o tcheco como uma de suas primeiras traduções, já em 1930 (logo depois das traduções para o alemão (1927) e francês (1929)).

3) Em um momento de Lições de dança, por exemplo, o narrador conta que estava andando pela rua e vê uma linda mulher que não parece estar usando calcinha; ele fixa o olhar exatamente ali, que, segundo o narrador, "é o ponto onde Goethe gostava de fixar o olhar antes de se sentar para escrever poemas"; em outro momento, o narrador relembra um velho conhecido, velho parceiro de noitadas, que, quando bêbado (especificamente nas festas na igreja), gostava de pegar as estátuas dos santos e despejar slivovitz pelas bocas de louça dos santos, o que gerava intensa revolta no padre, que vinha correndo, gritando: "bando de tártaros, é assim que vocês se comportam na casa de Deus?". 

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Um rato


Um rato entrou, não sei de que buraco;

Não silencioso, como é seu hábito,

Mas presunçoso, arrogante e bombástico.

Era loquaz, rebuscado, equestre:

Empoleirou-se em cima da prateleira

E me fez um sermão

Citando Plutarco, Nietzsche e Dante:

Que eu não devo perder tempo,

Blá-blá-blá, que o tempo urge,

E que o tempo perdido não retorna,

E que tempo é dinheiro,

E que quem tem tempo que o aproveite,

Porque a vida é breve e a arte é longa,

E que sente lançar-se às minhas costas

Não sei que carro alado e falcado.

Que petulância! Quanta baboseira!

Era de me torrar a paciência.

Acaso um rato sabe o que é o tempo?

Logo ele, que está gastando o meu

Com essa lenga-lenga descarada.

É um rato? Que vá pregar aos ratos.

Pedi-lhe que saísse do recinto:

O que é o tempo, eu sei perfeitamente,

Entra em muitas equações da física,

Em vários casos até ao quadrado

Ou com um expoente negativo.

E de meus casos quem cuida sou eu,

Não necessito de governo alheio:

Prima caritas incipit ab ego.


15 de janeiro de 1983


(Primo Levi, Mil sóis: poemas escolhidos, trad. Maurício Santana Dias, Todavia, 2019, p. 94-97)