sábado, 23 de agosto de 2025

Paradoxos sobre o paradoxo



1) Eros, o Doce-Amargo é, sem dúvida, um livro de análise literária sobre a poesia de Safo, sobre o grego antigo e sobre as relações entre filologia, poesia e filosofia; contudo, é também – e sobretudo – um livro sobre as estruturas profundas da poesia, sobre a colocação de certas palavras muito específicas em posições-chave dentro de uma frase, visando o melhor efeito estético possível. “Há um dilema dentro de eros que tem sido considerado crucial por pensadores desde Safo até hoje”, escreve Carson, mostrando que sua leitura diz respeito simultaneamente ao passado e ao presente.

2) Carson dá atenção às funções de certos termos e suas idiossincrasias – começando pelo “Doce-Amargo”, Bittersweet, sua tradução do glukupikron de Safo (“amor e ódio constroem entre si a maquinaria do contato humano”). Carson nota um verso no qual uma maçã está suspensa na árvore; o verbo para a “suspensão” é epeteto, que vem de petomai, o verbo “voar”. Geralmente é usado “para criaturas com asas ou para emoções que atravessam o coração”, ligado à “emoção erótica”, usado por Safo no fragmento 31 para dizer que eros “dá asas ao meu coração” ou “faz meu coração voar”. No trecho analisado por Carson – do romancista Longo, autor de Dáfnis e Cloé, do século II d.C. –, o verbo está no imperfeito, ou seja, “paralisa a ação do verbo no tempo”, já que o imperfeito expressa continuidade, “para que, como a flecha no paradoxo de Zenão, a maçã voe enquanto permanece parada”.

3) A análise de Carson é impressionante não apenas por aquilo que diz sobre um trecho, um autor, um momento do texto (como faz com o Fedro de Platão, ou com Os amantes de Aquiles [Achilleos Erastai], de Sófocles); é digna de nota também porque reitera o procedimento que sustenta o livro como um todo: buscar momentos de indefinição e ambivalência cristalizados na língua, nos significantes, na cadência poética de textos arcaicos, uma vez que o cerne da literatura é precisamente sua polissemia (“Da mesma forma que todos os paradoxos são, em certa medida, paradoxos sobre o paradoxo, todo eros é, até certo ponto, desejo pelo desejo”, resume Carson).

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Carta, luto



Consolatio ad Uxorem é uma carta escrita por Plutarco à esposa depois da notícia da morte de sua filha Timoxena, aos dois anos de idade. Ela recebeu o nome da mãe e seu nascimento foi precedido pelo de quatro meninos. Dos filhos de Plutarco, dois já haviam morrido: o mais velho e o "belo Caronte", que ele menciona na carta. Plutarco deve ter escrito a carta no intervalo entre receber a notícia em Tânagra e reencontrar sua esposa em Queroneia, que fica a mais de 64 quilômetros de distância em linha reta - uma viagem de um ou dois dias. Presumivelmente, a carta foi escrita em Tanagra e enviada com antecedência. A frase de abertura da carta já é uma referência a esse desencontro e a essa antecipação da escrita com relação ao encontro que ocorrerá em breve:

O mensageiro que você enviou para relatar a morte da nossa filhinha parece ter me perdido no caminho para Atenas; mas quando cheguei a Tânagra, soube; o funeral, suponho, já foi realizado, e meu desejo é que tenha sido realizado de forma a lhe causar o mínimo de dor, tanto agora quanto no futuro. 

Vários escritos de Plutarco são tidos, por seu estado incompleto, como rascunhos encontrados entre seus papéis após sua morte; esta carta, então, pode não ter sido publicada pelo próprio Plutarco, mas dada ao mundo por seus herdeiros literários.⁠ No entanto, consolações em forma epistolar eram frequentemente, como outras cartas, escritas para publicação.⁠ Uma comparação com outras consolações antigas (Ad Polybium de Consolatione e Ad Marciam de Consolatione, de Sêneca, o primeiro livro das Tusculanas de Cícero e o terceiro do De Rerum Natura de Lucrécio), revela temas recorrentes: o que acontece com a alma após a morte?; ou ainda, o cálculo da proporção entre bem e mal na vida (que na maioria das consolações leva à reflexão de que a vida é desagradável e a morte uma fuga; em Plutarco, surge um equilíbrio favorável: ele lembra à esposa as muitas bênçãos que ainda desfruta).

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

O amor e os amigos



1) Em sua biografia de Dante (capítulo 6, "O amor e os amigos"), Alessandro Barbero fala de uma novidade que surge alguns anos antes da época de Dante, talvez uma ou duas gerações antes, uma nova técnica da expressão, ou ainda, um novo modo de acessar e expressar certos sentimentos: Barbero resgata o momento da Vida nova no qual Dante fala de seu primeiro encontro com Beatriz e, consequentemente, de sua paixão e de seu encanto - a partir desse encontro ocorre a mobilização, por parte de Dante, dessa novidade: analisar a paixão amorosa e traduzir essa análise em versos feitos não em latim, como seria o normal, como seria de se esperar, mas em língua vulgar, na fala do cotidiano. Antigamente isso não existia, escreve o próprio Dante: "certos poetas eram declamadores de amor em língua latina", "e não se passaram muitos anos desde que apareceram pela primeira vez esses poetas vulgares". 

2) Essa novidade de ordem linguística, contudo, é potencializada por um método de proliferação das informações que já tinha uso consolidado na época de Dante: o envio de poemas para vários destinatários, como cartas, para alimentar a troca e criar uma rede de crítica e experimentação poética - e aqui, mais uma vez, esse eixo fundamental da carta, da correspondência e do envio, parte constitutiva da tradição, desde a Carta VII de Platão, passando pelas cartas de Cícero, do Apóstolo Paulo e de Santo Agostinho (é, de novo, a questão do endereçamento de que fala Heidegger na “carta”, de que falará Sloterdijk nas “regras para o parque humano” e que retomará o próprio Derrida alguns anos depois ao falar do “cartão-postal”). 

3) Dante, então, envia seu soneto - em língua vulgar, feito a partir do encontro com Beatriz - de forma anônima para vários destinatários, confiando nas regras do jogo que todos conheciam: em breve chegam respostas, também poéticas, salientando os pontos fracos, expandindo certos temas. Uma das respostas vem de Dante da Maiano, um companheiro um pouco mais velho, que escolhe, em sua resposta, uma via irônica e, de certa forma, baixa (no sentido futuro de Rabelais e Boccaccio), recomendando ao rapaz que lave os testículos com água fria, para arrefecer os ardores: "lave suas bolas amplamente / para que se extinga e passe o vapor". 

domingo, 10 de agosto de 2025

María Dolz


1) A narradora de Os enamoramentos, romance de Javier Marías, é María Dolz, mulher na casa dos trinta anos que trabalha em uma editora de Madri e todos os dias toma seu café, pela manhã, no mesmo bar – é lá que sempre observa um homem que, mais adiante, será esfaqueado. A primeira camada da história que conta María Dolz é simples: sua observação daquilo que acontece ao redor. Novos personagens, porém, surgem, e com isso novas versões daquilo que se pensava já conhecido. Marías articula uma narrativa que, em alguns momentos, é carregada de suspense – uma tensão que explode no interior de uma linguagem densa e reflexiva. As cenas de potencial perigo ou violência normalmente surgem de improviso, como que rasgando abruptamente aquele véu descritivo e digressivo da narração de María Dolz.

2) Existem dois momentos em Os enamoramentos que extrapolam questões como narração, credibilidade ou uso dos gêneros – e são esses momentos que garantem a complexidade do livro. Marías, logo depois do primeiro quarto do livro, passa a construir sua narrativa lado a lado com uma novela de Balzac de 1832, O coronel Chabert, sobre um coronel de Napoleão que é dado por morto em batalha mas que retorna, vivo, anos depois. Mais de cem páginas depois, Marías costura em sua narrativa um momento de Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas (de 1844), que trata do mesmo tema de Balzac: uma pessoa dada por morta que retorna para assombrar os vivos.

3) Essas duas incorporações transformam o romance. Ecoam até o final, e temos a impressão de reler Dumas, Balzac e toda uma faceta da tradição literária a partir das palavras de Marías, como numa espécie de espectrografia (como faz Sebald, também pela via de Balzac, em Austerlitz), de necromancia textual. A sensibilidade de Marías está em sua violenta abordagem do passado, levando o leitor a uma profunda reconsideração do tempo e do espaço, a uma profunda reconsideração do real através do literário.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Lacunas foucaultianas



1) Descobri recentemente a resenha de Martha C. Nussbaum do segundo volume da História da sexualidade, de Michel Foucault, publicada em 10 de novembro de 1985 no The New York Times; ela, já de saída, lamenta a morte desse pensador "sério e corajoso" (Foucault morre no ano anterior, em 25 de junho de 1984) e, junto desse primeiro lamento, lamenta também que sua obra mais recente seja desapontadora. Segundo Nussbaum, o tratamento que oferece Foucault da Antiguidade, especificamente dos textos em grego (ela menciona especificamente certa ingenuidade de Foucault no tratamento dos textos "hipocráticos", aos quais ele não dá a devida atenção no que diz respeito à ampla variação de contextos e épocas de circulação dos variados textos, a grande maioria não sendo de autoria de Hipócrates, e sim, precisamente, de hipocráticos), é pouco rigoroso. 

2) Em vários pontos do texto, as críticas de Nussbaum são válidas e estimulantes, embora em certos momentos ela critique o projeto de Foucault não pelo que apresenta, mas pelo que deixa de apresentar (nenhuma menção às peças de Aristófanes, por exemplo), argumento que acaba se tornando contraproducente para a própria crítica, já que algo sempre vai faltar, algo sempre vai ficar de fora, mesmo no trabalho mais sistemático (e é precisamente a sistematicidade que é transformada pela trajetória de Foucault como um todo, que Nussbaum é a primeira a elogiar). 

3) A crítica de Nussbaum dá a impressão de que, para ela, o projeto de Foucault como um todo é válido e estimulante, até o ponto específico em que se choca com seu campo de estudos (talvez ela se identificasse com o trabalho não-convencional de Foucault, em algum nível?, especialmente levando em consideração que, em 1982, Harvard negou seu processo de tenure?), algo que se insinua quando ela critica a dependência de Foucault das traduções: "Para começar, Foucault é automaticamente excluído de qualquer evidência que não seja traduzida (isso inclui algumas evidências cruciais sobre mulheres, para as quais a atenção do livro é, de qualquer forma, desigual), e está condenado a depender dos caprichos dos tradutores para o restante. Ignorando completamente a história política e social grega e os problemas acadêmicos que cercam os textos que utiliza, ele não consegue situar com segurança o que lê."

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Limites, criação



"O verdadeiro mérito da filosofia da história de Vico não reside naquilo que ela nos ensina sobre o processo histórico e o ritmo de suas sucessivas fases. Em seu sistema, a divisão da história humana em épocas e a tentativa de descobrir nelas uma certa ordem - a transição da era divina para a era heroica e da era heroica para a era humana - ainda são atormentadas por características fantásticas. O que Vico vê claramente, e sustenta com toda energia diante de Descartes, é a peculiaridade metodológica, o valor próprio do conhecimento histórico em termos de método. (...)

De acordo com Vico, o verdadeiro objetivo do nosso saber não é o conhecimento da natureza, mas o autoconhecimento humano. A filosofia que, em vez de se contentar com isso, postula um conhecimento divino ou absoluto transgride seus próprios limites e se deixa levar por delírios perigosos. A regra suprema do conhecimento é, para Vico, o princípio segundo o qual nenhum ser penetra no conhecimento verdadeiro, mas naquilo que ele mesmo cria. O campo do nosso conhecimento nunca se estende além dos limites da nossa própria criação. (...)

Mito, linguagem, religião, poesia: esses são os objetos verdadeiramente adequados ao conhecimento humano. Esses são os objetos que Vico examina de maneira primordial no sistema de sua lógica"


(Ernst Cassirer, Ciências da cultura, trad. César Benjamin, Contraponto, 2024, p. 18-20)

domingo, 27 de julho de 2025

A cabeça de Netuno



1) Na sua Carta sobre os surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam (publicada em 1751, poucos meses antes do primeiro volume da Enciclopédia), Diderot cobre uma série de temas e apresenta uma constelação de cenas heterogêneas - algo bastante típico do ambiente "iluminista" em geral. Chama a atenção as citações nas línguas originais que faz Diderot - Homero citado do grego, Virgílio e Lucrécio citados do latim, Torquato Tasso citado do italiano - e, dentro desse tópico, chama a atenção o cuidado de Diderot na circunscrição de seus comentários à letra do texto, um método de leitura cerrada que, de resto, como Diderot sabia bem, começou (em certa medida) com os gramáticos alexandrinos em seu trabalho com Homero. 

2) Um dos momentos mais interessantes da carta de Diderot é quando ele discute os momentos em que uma passagem do literário ao visual não é garantida, desejada ou mesmo esteticamente congruente. Para construir o argumento, Diderot resgata uma passagem da Eneida de Virgílio, os versos 124-127 do primeiro Livro: "Netuno percebeu que o mar se agitava com grande ruído e que águas tranquilas do fundo estavam em revolta; violentamente abalado, olha para o alto desde o fundo, erguendo a cabeça acima das ondas". 

3) Diderot argumenta que aquilo que funciona no poema, não funcionaria na pintura - como levar à tela a imagem impressionante do deslocamento do deus das profundezas em direção à superfície? Tudo que a pintura poderia mostrar, no caso específico desses versos, é a imagem do deus degolado, Netuno como uma reles cabeça decepada flutuando no mar, nada mais distante da magnificência produzida pelos versos de Virgílio, que colocam em contato a transformação do destino de Enéias (que sofre no mar) e a súbita consciência de Netuno de que algo não está correto em seus próprios domínios.