sábado, 1 de fevereiro de 2025

Um caso espírita, 2

Tábua de Giovanni Morelli

1) O momento em que a velha cega percorre o rosto de Gibbon com as mãos é o ápice do conto de Leskov: o momento de riso e humor (sem dúvida uma dimensão da "incontinência" meticulosamente pensada por Leskov: o riso corre solto como poderia fazê-lo a merda de um rosto que parece um ânus) e, também, o momento em que a crença no sobrenatural da princesa caia por terra: a senhora Genlis falhou, não ofereceu o oráculo que ela gostaria.

2) A cena toda é, também, uma lição de humildade - como aquela que Montaigne arma em seu ensaio sobre a experiência, também articulada em torno de um envio em direção à merda e ao cu, quando ele escreve que mesmo no trono mais alto, estamos sempre sentados sobre nosso cu (Et au plus eslevé throne du monde si ne sommes assis que sus nostre cul). E também uma reflexão sobre os prazeres baixos e a onipresença do escatológico em nossos processos psicológicos, como mostrará Freud poucas décadas depois da publicação do conto de Leskov: desde a Psicopatologia da vida cotidiana até a "dreckologia" (ou ainda, a "merdologia" de que fala  Freud em suas cartas para Fliess) que precede até mesmo a Interpretação dos sonhos, já que data de 1897.

3) A cena de Leskov, na qual um rosto se transforma em cu, pode ser vista também como uma sorte de antecipação artística (o próprio Freud não disse que foi nos poetas do passado que encontrou a doutrina psicanalítica?) da crítica aos procedimentos de controle e padronização dos corpos e rostos, sobretudo com fins policiais: não só a fisiognomonia de Lavater (e também de Goethe), mas também as impressões digitais de Francis Galton (ou mesmo a frenologia de Cesare Lombroso - e são absolutamente contemporâneos, já que Leskov nasceu em 1931 e Lombroso, em 1935), tudo isso evidentemente amarrado narrativamente por Carlo Ginzburg em seu ensaio de 1979 sobre o paradigma indiciário (que, de resto, se ocupa extensamente de Freud e de Giovanni Morelli).