quinta-feira, 4 de maio de 2023

O canhoto


"Naquele momento - e recordo isso de forma tão exata como se a imagem estivesse passando de novo agora na minha frente -, pensei em como, em seus diários, Camus conta uma história dupla que tem a ver com Nietzsche e com Múcio Cévola, um herói romano do século VI a.C. Cévola foi capturado quando tentava matar o rei etrusco Porsena e, para não denunciar seus cúmplices, deu provas de seu destemor colocando a mão direita sobre o fogo e deixando que ela queimasse. De tal gesto proveio seu apelido, Cévola, o canhoto. Segundo Camus, Nietzsche se irritou quando seus colegas de escola disseram que não acreditavam na história de Cévola. E assim, aos quinze anos de idade, Nietzsche apanhou uma brasa na lareira e segurou-a na mão. Queimou-se, é claro. Nietzsche levou a cicatriz consigo durante o resto da vida.

Entrei no apartamento e cumprimentei os que estavam acordando. Cinco minutos depois, fui embora. Só alguns dias mais tarde, ao verificar aquela história em outra fonte, vi que o desprezo de Nietzsche pela dor tinha sido expresso não com uma brasa, mas com um punhado de palitos de fósforo acessos que ele colocou na palma da mão e que, quando começaram a queimar sua pele, um assustado inspetor da escola jogou os fósforos no chão"

(Teju Cole, Cidade aberta, trad. Rubens Figueiredo, Cia das Letras, 2012, p. 297)

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